Thursday, January 28, 2016

DUAS VISÕES CRÍTICAS SOBRE "ANOMALISA", NOVO FILME DO FABULOSO CHARLIE KAUFMAN


"ANOMALISA": UMA PEÇA CHAVE DO MAGNÍFICO UNIVERSO TEMÁTICO DE CHARLIE KAUFMAN

por Caio Coletti
para OBSERVATÓRIO DO CINEMA

Quando encaramos mais um filme com a assinatura de Charlie Kaufman, 17 anos depois de Quero Ser John Malkovich, já sabemos o que esperar. Cada uma das obras do roteirista (e agora diretor) mergulha em um mundo muito específico de metalinguagem e reflexões existenciais que foram se tornando cada vez mais angustiantes com o tempo. A meditação sobre as idas e vindas do amor em Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças, as ansiedades artísticas de Adaptação, tudo culminou no fundamentalmente exasperador (e pessimista, e terrivelmente belo) Sinédoque, Nova York, em 2008.

Talvez justamente por isso Kaufman tenha demorando tanto tempo para moldar sua obra seguinte, que sai agora, quase 8 anos depois de Sinédoque, e abraça uma técnica cinematográfica inédita na filmografia do diretor (a animação stop-motion), adaptando para o cinema de maneira única um texto escrito por Kaufman originalmente para o teatro. E talvez também por isso Anomalisa possa parecer simples e fácil demais para os adeptos da obra anterior do roteirista.

Sem esconder as origens teatrais, o filme se passa em poucos cenários, e contem longos diálogos entre um número limitado de personagens – Michael Stone (voz de David Thewlis) é um escritor de não-ficção que vai para a cidade de Cincinnati para dar uma palestra, e no hotel encontra Lisa (Jennifer Jason Leigh), que lhe chama a atenção por ter uma voz diferente de todos ao seu redor. O que acontece é que aos ouvidos de Michael, todos os outros personagens do filme soam como o ator Tom Noonan, um efeito interessante e bizarro que coloca Anomalisa pelo menos um pouco no terreno da metaficção de Kaufman. Ao ouvir o belo tom dessa mulher machucada por decepções e de baixa autoestima, Stone se convence que está apaixonado.

O filme não perdoa o seu protagonista pela forma como ele se aproveita dos problemas de Lisa e da sua (relativa) inocência, apenas nos mergulha no mundo dele em que a monotonia (literal) do mundo se torna verdadeiramente exasperante. Kaufman nos explica os atos de seu Michael Stone, mas não os justifica – e, essencialmente, humaniza a jornada de Lisa de tal forma que somos levados a sentir por ela muito mais do que sentimos pelo casamento fracassado e pela crise existencial de Michael. A voz brusca de Thewlis contrasta com a interpretação delicada de Jason Leigh, e é aí que o pendor emocional e moral do filme está decidido, mesmo que sutilmente.

Apesar desses pequenos truques e da forma como se utiliza da técnica de animação (lindamente executada, diga-se de passagem), Anomalisa é uma história direta, simples e extraordinariamente crível para os padrões de Kaufman. Obrigando-se a encarar a realidade ao invés de tecer argumentos existenciais da fantasia, o roteirista/diretor cria um de seus filmes mais tocantes e interessantes, e mostra que não precisa de muito para desenvolveu sua forma única de ver a arte da narrativa.

Anomalisa é de quebrar o coração, é tremendamente corajoso, e é mais uma pecinha especial do trabalho em constante evolução que é a visão de mundo de Charlie Kaufman. Em resumo: é um filme indispensável.


A HUMANIDADE DE CHARLIE KAUFMAN POSTA À PROVA EM "AMONALISA"

por Robledo Milani
para PAPO DE CINEMA


Mona Lisa. Anomalia. Lisa. Todas estas expressões revelam significados e servem de pistas para o que Charlie Kaufman tem a dizer em seu novo filme, Anomalisa. O roteirista vencedor do Oscar por Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças (2004) estava desde Sinedóque, Nova York (2008) – longa que marcou também sua estreia como realizador – sem ter seu nome associado a uma grande produção. Sete anos se passaram e agora ele retorna, não apenas assinando o roteiro, mas também a direção, desta animação em stop motion extremamente simples e, ainda assim, absurdamente sofisticada. Diz-se muito pouco, em somente 90 minutos, mas é impressionante o quanto se retém com o espectador após o seu término. Este é um legítimo caso daquelas obras que só tendem a crescer após sua conclusão.

O universo animado, aliás, tem sido um espaço confortável para cineastas buscarem novas referências e assumirem desafios mais excitantes. Foi assim como Wes Anderson (O Fantástico Sr. Raposo, 2009) e com Guillermo Del Toro (Festa no Céu, 2014, do qual é produtor). Agora chegou a vez de Kaufman, que dá esse arriscado passo não sem antes se precaver: ao seu lado, como codiretor, está Duke Johnson, profissional de longa experiência no formato – é dele, por exemplo, o memorável episódio da série Community (2009-2015) em que todos os personagens são transformados em bonecos de massinha. Juntos eles conduzem a audiência pela sofrida jornada do protagonista, Michael Stone (voz de David Thewlis), um homem em busca do mais complicado dos sentimentos: amor.

Muito do charme do quadro desenhado por Leonardo da Vinci se dá pela expressão enigmática da personagem, da qual pouco se descobriu com o passar dos séculos – estará ela feliz, triste, resignada, na expectativa? Assim também está Stone, um importante palestrante motivacional que parece, ironicamente, ter perdido a vontade de viver. Não que tenha pensamentos suicidas – apenas não vê mais graça em nada. Isso se percebe, principalmente, pelas interações com as pessoas que vão surgindo em seu caminho – todas, sem exceção, soam exatamente iguais (e compartilham da voz de Tom Noonan). Tudo parece mudar quando, no hotel em que se hospeda para a palestra que dará no dia seguinte, acaba conhecendo Lisa, a única dona de uma voz própria (cortesia de Jennifer Jason Leigh). Ela é tímida, desajeitada, gordinha e com uma cicatriz no rosto. E, ainda assim, lhe preenche o coração como nenhuma outra.

Mas há mais se debatendo no interior de Michael Stone. Ele abandonou sua primeira paixão, trata com desdém a família que tem hoje – mulher e filho – e parece não se preocupar nem mais com a profissão que inventou para si. Seu vazio existencial é tamanho que o choque de algo novo poderia lhe causar reações extremas. Quem nunca ouviu a expressão “de cair o rosto”? Pois é isso, literalmente, que está prestes a acontecer ao protagonista. Mas terá ele, de fato, este destino? Ou essa impressão mesmerizante do mundo não seria antes um reflexo de sua própria apatia, ao contrário de ser provocada pelos demais? Enfim, o problema estaria nele ou nos que o rodeiam?

Quem conhece a obra de Charlie Kaufman já imagina que nenhuma resposta será concedida facilmente. Anomalisa, assim como o segredo estampado no rosto da pintura clássica, também carrega seus mistérios sob a luz dos acontecimentos, permitindo que cada um dos observadores chegue a sua própria conclusão. O diferencial, no entanto, é que esta curiosa abordagem se dá através de uma singular sensibilidade, envolvendo os personagens e dotando-os de uma propriedade que os eleva da mera criação ficcional – reforçado pelo caráter intrínseco à animação – para dignificá-los com uma humanidade sem par. Um feito nada fácil, mas que aqui é atingido com objetividade e impressionante segurança.


ANOMALISA
(2015, 90 minutos)

Direção e Produção
Duke Johnson
Charlie Kaufman

Roteiro
Charlie Kaufman

a partir de uma peça de Francis Fregoli
(na verdade, um pseudônimo de Charlie Kaufman)

Direção de Arte
Tom Noyce

Vozes
David Thewlis
Jennifer Jason Leigh
Tom Noolan


em cartaz nas melhores salas de cinema
do Rio e de São Paulo

(mas infelizmente não em Santos,
por culpa de OS DEZ MANDAMENTOS)


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