Thursday, December 17, 2015

CARIOCA (por Carlão Bittencourt)



O mulato se aproximou do rapaz cabeludo, magro, barbudo, de jeans e sandálias de couro, e sapecou o surrado chaveco da sinuca, a pergunta mais manjada e conhecida por quem não troca uma visita ao pano verde por nada neste mundo: 

"E aí, Jesus Cristo, estás a jogo ou a passeio?"  

O jovem cabeludo olhou para o outro e sorriu. Era um sorriso franco, bonito, de quem tem a vida inteira pela frente. Depois, retrucou:

"Depende do partido, meu chapa. Com um cordão de frente, a gente se pega até amanhã de manhã..."

O mulato gostou da resposta e devolveu a simpatia. Estendeu a mão e lascou:

"Pois, então, tá combinado, Jesus, pode subir na mesa. Eu sou o Carioca!"

O cabeludo não se deu conta na hora, mas naquele momento, tinha ganho um apelido e um amigo. Para toda a vida. Jesus Cristo. Aquele codinome de guerra o acompanharia enquanto freqüentasse o Salão Maravilhoso, o Maravilha, lenda urbana das maiores e mais respeitadas do Centro de São Paulo, bem ali na esquina das avenidas Ipiranga com São João. Foram para o jogo.


Carioca sabia tudo. Jogava bem. Batia suavemente nas bolas, de leve, com efeitos precisos, delicados, como se não quisesse machucá-las. E as bolas coloridas retribuíam seu carinho, corriam pela mesa macia, se exibiam para ele, como éguas de raça quando fazem o canter: orgulhosas, cientes da própria força, beleza e condição.

O cabeludo não perdeu nada. Sacou todos os códigos de malandragem, dissimulação e estilo do parceiro. E gostou do que viu. Carioca jogava e deixava jogar. Era taco para enfrentar qualquer pedreira. Um craque do baratino, um ás do desacato, uma piranha do pano verde.

Duas horas depois, o cabeludo fez as contas e não deu outra: estava no prejuízo. Tinha perdido quatro de uma série de doze partidas. Poderia até ter sido pior. Teve sorte. Pagou o adversário e perguntou, direto:

"Você me baratinou legal, é ou não é, Carioca? Teu jogo é bem mais forte do que o meu, né?"

O mulato abriu o jogo. E o bico. Mas não se esquivou. Pelo contrário. Dava para ver que caráter e coragem sobravam nele. Disse que era engraxate do próprio Maravilha, titular da cadeira n° 5. Que tinha um monte de filhos para sustentar. Que fazia uns bicos para aumentar a renda da família, jogando sinuca, baralho e o escambau de Madureira. Por último, disse que se chamava Adílson, mas que todos no pedaço o chamavam mesmo era de Carioca.

O cabeludo, por sua vez, também se apresentou. Falou que era de Santos, que fazia faculdade de propaganda. Que morava numa “república” num treme-treme da Rua Guaianazes e coisa e tal. E que era louco por sinuca. Desde pequeno, desde que se entendia por gente, desde sempre. Disse também que sabia que, no momento, seu jogo estava fraco, com a força da pipoca, mas que ele tinha certeza de que ainda seria um taco de primeira linha.

Carioca gostou dele. E decidiu que iria treinar o rapaz, ensinando a ele todas as mumunhas e mutretas do joguinho. Ou seja, o jogo que está por trás das bolas coloridas e por baixo do pano verde, o jogo por dentro do jogo, a sinuca de verdade.

E mostrou.


Seis meses depois, ao entrar no “Maravilha”, Jesus Cristo era saudado por todos. E temido. Não chegava a ser um Praça, um Fantoche, um Calói. Mas era o Jesus Cristo falado, aquele das tacadas assombrosas, inacreditáveis, milagrosas. E isso bastava para que fizesse parte da corriola de “profissas” do pedaço. E ainda o habilitava a tomar uma grana dos pangarés, patos e loquestrotes em geral que se aventuravam a passar pelas portas do velho salão de sinuca.    

“Loucos. Não fazem idéia do risco que correm”, pensava Jesus Cristo.

Se esgueirando, camufladas, por detrás das mesas Taco de Ouro e Brunswick, e da cortina de fumaça azulada dos cigarros baratos, e dos sorrisos dissimulados, e dos olhares de esguelha, lá estavam elas, à espera, quietas, entocadas em seu covil, encravado na esquina das avenidas Ipiranga com São João.

Vorazes, famintas, as feras de jogo do velho Salão Maravilhoso estavam prontas para atacar.





Carlão Bittencourt é redator publicitário e cronista, 
autor de "Pela Sete - Breves Histórias do Pano Verde" 
(2003, Editora Codex), 
um mergulho no universo dos salões de bilhar de São Paulo, 
e escreve toda semana em LEVA UM CASAQUINHO.
Desnecessário dizer que o Jesus Cristo da crônica é ele próprio.





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