Wednesday, December 2, 2015

COTY (por Carlão Bittencourt)



Houve um tempo em que a solidariedade ia muito além de algumas moedas. Naquela época, como dizia o poeta, “o coração valia muito mais”. E como valia. 

Corriam os anos cinqüenta e Santos caminhava em direção ao futuro. Sem pressa. Lentamente. Quase que na contramão das pretensões do então Presidente JK, que queria porque queria que o Brasil crescesse “50 anos em 5”, como sugeria seu slogan. Juscelino teimava em transformar nosso país numa espécie de grande Pasárgada tropical. 

Portanto, a pacata Santos, seguia seu ritmo normal, sem atropelamentos nem correrias. A vida era, antes de tudo, para ser vivida. E bem, se possível. 

Bons tempos. As pessoas eram mais tranqüilas, mais felizes e, sobretudo, mais humanas. O bairro da Vila Matias era um bom exemplo desse vagar todo próprio, tão bom e santista como as praias e o hábito de tomar café. 

Naquele lugar, após o jantar, as famílias costumavam por cadeiras nas calçadas para conversar entre si e com os vizinhos. E a criançada, solta, brincava à vontade de mão na mula, pega-pega, amarelinha, bola, queimada, pião, carrinho de rolimãs, taco, botão e tudo mais o que a imaginação infantil fosse capaz de inventar. E de perpetuar em forma de alegria.


Se você tem menos do que quarenta anos, pasme. Era uma época em que o telefone era um artigo de luxo, a televisão estava apenas engatinhando no Brasil e a maioria das geladeiras não funcionava a eletricidade mas, acredite, com barras de gelo! 

É fato que as crianças já tinham seus medos. Tinham mesmo. Mas até no imaginário infantil os tempos eram outros. E menos tenebrosos. Os pequenos perdiam o sono, por temor a seres assustadores, como o homem do saco, a mula sem cabeça, a mulher vampiro e outras lendas urbanas com o mesmo componente de ingenuidade. Quem diria que, um dia, iríamos sentir saudade até do medo que sentimos um dia. Mas é verdade. Tudo verdade. Como a chegada do bêbado Coty à Vila Matias.


Um dia, sem mais essa nem aquela, o bairro percebeu que tinha um novo morador. E que não se tratava de um vizinho comum. Simples. Coty era um mendigo. Não tinha nome. Nem idade. Morava na rua. Mas não em qualquer rua. Nesse aspecto, o indigente mostrou que era também exigente. Porque entre as tantas ruas e praças do pedaço, ele escolheu justamente a linda Rua Lucas Fortunato para ser o seu lar. Coty era mendigo, mas não era bobo. Logo, todos saberiam disso. 

Bairro formado quase que exclusivamente por famílias de trabalhadores da extinta classe média – aquela que era média “na batata” – a Vila Matias madrugava. Às seis da manhã, a vida ali já corria solta, com a “vendinha” da esquina aberta e servindo a freguesia. Para a mão de obra, pingado com pão e manteiga. Para Coty, a primeira pinga do dia. Que ele também pegava cedo no batente. 

Certo dia, algo inesperado aconteceu, na casa de Dona Concheta, uma italiana gorda, que morava na esquina. Sua nora, Solange, que estava grávida, entrou em trabalho de parto. Era o tão esperado primeiro neto. Que correria! 

- Ajuta, Carmela!


Sentado na soleira do portão da casa, Coty ouviu todo o fuzuê. E, mesmo de pileque, levantou-se e saiu correndo. Leia-se, cambaleando com relativa pressa. Cinco minutos depois, o prestativo pau d’água retornou, acompanhado da melhor parteira do bairro, a resoluta mulata Esmeraldina. 

Ao abrir a porta e dar de cara com Coty e a famosa parteira, Dona Concheta entendeu tudo. Na hora. E agradeceu à presteza do bebum, com uma garrafa já meio abatida de conhaque Palhinha. Coty, compenetrado, fez um brinde à saúde da criança e bebeu o conteúdo. De uma talagada. 

Outra vez, o problema foi de gás. Ouvindo os gritos que vinham da casa do Seu Geraldo, um doqueiro aposentado, Coty correu para acudir. Sabe-se lá como, conseguiu fechar o bico do gás de rua, que ficava junto do fogão. É óbvio que o seu gesto não passou despercebido. A ninguém. 

Após a aflição, as vizinhas brincavam com Josefa, esposa de Geraldo, comentando o risco duplo que ela havia corrido. Pois, além do escapamento de gás, ela ainda havia se arriscado, ao deixar Coty cuidar do problema. Logo ele, que era tão ou mais inflamável do que todo o Gasômetro de Santos. 

Assim, Coty pouco a pouco foi conquistando o carinho de todos. Das crianças, inclusive, que adoravam provocar o pobre homem. Estabeleceu-se quase que um código entre o mendigo e os pequenos. Uma brincadeira diária que começava sempre da mesma maneira. Um dos pestinhas perguntava: 

Coty, cadê o batom? 

E o bebum respondia, desbocado: 

Tua mãe infiou no cu!


A molecada ria e fazia uma algazarra danada em volta do bêbado, e ele fingia que estava bravo. A piada era sempre a mesma, tão surrada quanto as roupas do mendigo, mas as gargalhadas eram inevitáveis. 

Outra festa era quando ele jogava bola na rua. Que espetáculo. Aquilo era um verdadeiro desafio à lei da gravidade. O homem balançava de um lado para o outro, como se estivesse num navio em plena tempestade. E tentava controlar a bola, fazendo “lelê” com os pés. Era muito engraçado. Uma comédia do cotidiano, que tinha por palco, a tranqüila e hospitaleira Lucas Fortunato. 

Aliás, era nesta rua, mais exatamente no número 182 (que hoje é outro), que Coty adorava almoçar. A abordagem era a mesma. E funcionava. Sempre. Ele batia palmas, mais pra lá do que pra cá. A “janelinha” da porta se abria e, então, surgia o rosto bom e amável de Dona Joana, costureira de mão cheia e cozinheira não menos habilidosa. Ela dizia: 

- Oi, Coty, como vai? 

Ao que ele respondia: 

- Como Deus quer, Dona Joana. A senhora pode me arranjar um prato de comida? 

Estava garantida a bóia. Em menos de cinco minutos Coty estava debruçado sobre um prato fundo de arroz com feijão, tomate e alface, além de um bom naco de paio, acompanhados de um pãozinho e uma banana “nanica” de sobremesa. Maravilha. Fosse quem fosse, rico ou pobre, quem visse aquele homem comer ficava com água na boca. Era irresistível. 

Aliás, apesar de estar quase todo tempo bêbado, Coty adorava comer. E tinha lá os seus requintes, apesar das condições precárias em que vivia. Ou sobrevivia. O bairro teve uma boa prova disso ao amanhecer de uma certa sexta-feira, dia 13.


Mal abriu os olhos, ele deu de cara com um magnífico “despacho” que tinha sido feito naquela encruzilhada. Sem vacilar, o homem foi para o meio do cruzamento, sentou-se e, como um nababo, traçou aquele exagero de macumba. Um ebó soberbo, para Exú Cabeleira nenhum botar defeito. 

Uma draga teria feito menos estragos no bode, no galo preto, na farofa, no cuscuz. E, lógico, também nas garrafas de champanhe e cachaça, que Coty bebeu até a última gota. Terminado o festim diabólico, o insaciável bêbado soltou um arroto imenso, antes de calmamente acender um dos charutos numa das velas acesas. O falatório foi geral. E, numa coisa, todos concordavam: ele não escaparia da vingança do “santo”. Engano. Coty continuou bêbado e levando a sua vidinha vadia pelas ruas e vielas da Vila Matias. Como sempre. 

Um dia, sem essa nem aquela, desapareceu. Sumiu no ar, do mesmo modo como havia chegado ao bairro. Inesperadamente. Pergunta daqui, pergunta dali, ninguém sabia do seu paradeiro. O tempo foi passando até que ninguém mais falava nele. Foi-se. 

Passaram-se os anos. Muitos anos. Até que um daqueles garotos que moravam na Lucas Fortunato, já homem feito, foi visitar a Faculdade de Medicina de Santos, a convite de um amigo que estudava lá. Com a curiosidade mórbida que caracteriza o ser humano, ele tomou coragem e perguntou aonde ficava a sala de dissecação. Foi rapidamente levado ao local. 

O amigo estudante, como mandava o figurino, foi mostrando tudo ao outro. Primeiro, os tanques de formol, onde estavam depositados pedaços de corpos humanos para melhor conservação. Depois, calmamente, foi tirando os lençóis que cobriam os cadáveres que repousavam sobre as mesas. 

O visitante olhava tudo de maneira natural. Sem demonstrar medo ou repugnância pelo que estava vendo. Para ele, aquilo simplesmente fazia parte da vida. Nada demais. Assim, um por um, os corpos foram sendo descobertos. E observados. 

O futuro médico demorou a perceber que andava sozinho através da sala imensa. E fria. Ao virar-se para trás, viu o outro parado, reverente, diante de um dos cadáveres. Voltou. Espanto. Ele chorava. Perguntou o que tinha acontecido. Sem reação. O amigo continuava chorando. Então, com os olhos cheios de lágrimas, o homem apontou o cadáver que jazia sobre a mesa de mármore. O estudante não entendeu. Para ele, aquele era apenas mais um dos inúmeros corpos, vindos do IML, indigentes em sua maioria. Só isso. 

 Mas o outro sentia algo muito diferente. Sem dúvida. E tinha um bom motivo. Ali, diante dele, descansava uma parte querida de sua infância. Uma lembrança desaparecida num canto escuro de sua memória afetiva. Um amigo. Era Coty.




Carlão Bittencourt é redator publicitário e cronista, 
autor de "Pela Sete - Breves Histórias do Pano Verde" 
(2003, Editora Codex), 
um mergulho no universo dos salões de bilhar de São Paulo, 
e escreve todas as quartas-feiras em LEVA UM CASAQUINHO




1 comment:

  1. Muito bom, Carlão. gostei demais. Belo texto, como sempre. Abraçø

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