por Rafael Waltrick
para CINEMA EM CASA
Filmes que se passam em somente um ambiente, seja como forma de experimentação ou para economizar custos, já são parte da cultura cinematográfica há décadas. Basta se lembrar de clássicos como Doze Homens e Uma Sentença (1957) e Festim Diabólico (1948), ou mesmo produções recentes como Enterrado Vivo (2010) e God On Trial (2008) — já publiquei aqui um Top 5 sobre os filmes que economizam no cenário. Raros, porém, elevaram o espaço em que se desenrola a narrativa ao status de personagem, tão crucial para o desenvolvimento da história quanto os atores que ali habitam. E é nesse grupo restrito que se enquadra O Baile (1983), dirigido pelo italiano Ettore Scola.
A produção rodada na França e que concorreu ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro pode ser descrita como um “musical às avessas”. O conceito por trás do filme é inusitado: diferentes personagens – interpretados por um mesmo grupo de atores – frequentam um salão de baile e interagem entre si sem trocar uma única palavra. Não há um recorte cronológico específico em que se passa a ação. A narrativa se desloca entre diferentes décadas, por meio de elipses drásticas que mudam a caracterização dos personagens e a música que toca ao fundo, seja apresentada por meio de uma banda ou de um rádio a pilhas. Aí reside mais um “detalhe” importante: toda a música que ronda o salão é ambiente e toca de forma quase ininterrupta, a não ser quando o espaço deixa de ser um local de entretenimento para se transformar em refúgio.
Desta maneira, Scola nos apresenta um filme pouco convencional, ainda mais em se tratando de um musical, gênero explorado à exaustão na época de ouro de Hollywood e que ajudou a popularizar a indústria cinematográfica norte-americana.
O principal diferencial de O Baile é justamente a liberdade narrativa a que o diretor se permite, abrindo mão de artifícios que poderiam facilitar a experiência do espectador “comum” – não há dizeres na tela descrevendo em que ano se passa a ação e tampouco são dadas muitas informações sobre quem são aqueles seres que dançam, sofrem e se divertem no salão de baile, sempre caracterizados por trejeitos maneiristas e figurinos espalhafatosos, como se estivessem a se conduzir por um palco de teatro.
A própria câmera conduzida por Scola reflete esse descomprometimento com os cânones de um musical clássico. Em vários momentos, a tela se desloca rente ao chão, como para que observarmos o ritmo dos pés apressados que rodam pelo salão; na ocasião seguinte, a câmera já estará na altura dos dançarinos, em um plano médio que foca os casais e ronda os personagens, chegando a correr em meio às duplas em travellings virtuosos. Os planos gerais e planos conjuntos também são frequentes, a fim de lembrar o espectador de que o salão, em si, é um personagem a ser acompanhado e decifrado.
Muitos, ao fim da projeção, se perguntarão: afinal, do que se trata O Baile? É uma homenagem ao gênero musical ou à história da França contemporânea? Seria uma análise audiovisual sobre a fugacidade das relações humanas ou trata-se, antes de tudo, de um experimento cinematográfico produzido para aplacar anseios do diretor?
Como bem lembra o professor e doutor em Artes Visuais Marcos Camargo, que tive a oportunidade de conhecer durante uma pós-graduação que estou fazendo na Faculdade de Artes do Paraná (FAP), filmes como este “não podem ser compreendidos por meio de uma inteligibilidade gramatical”. Assim, seria perda de tempo e de massa cerebral se esforçar para, ao fim de O Baile, identificar ou interpretar de forma lógica a narrativa proposta por Ettore Scola e suas intenções a conduzir cada sequência.
Que isso não seja visto como um argumento contra a produção. Muito pelo contrário, pois é aí que reside o grande mérito do filme. O Baile permite diferentes interpretações e, num sentido prático, diferentes experiências para cada espectador. Está clara ali uma despreocupação com os cânones, possibilitando a fuga de lugares-comuns, clichês e finais redondos, estruturados para satisfazer o desejo do espectador por um entretenimento fugaz. Quase trinta anos após seu lançamento, O Baile continua enigmático, desafiador e inovador. Ao fim, é música para os ouvidos e olhos.
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