Thursday, November 10, 2016

COM VOCÊS, A OBRA PRIMA DE DONALD WESTLAKE, UM ROMANCE POLICIAL PERFEITO

por Márcio Calafiori


Em O Corte (Donald E. Westlake, Companhia das Letras, 2001), Burke Devore é um profissional especializado na fabricação de papel: “Trata-se de uma área que realmente conheço a fundo. Sei que muita gente considera papel um assunto maçante, mas na verdade não é. Podemos até comer papel, sabiam disso? Um tipo especial de matéria-prima de papelão é usado como aglutinante em muitos sorvetes industrializados.” Pois bem, depois de vinte anos de atividade ininterrupta na Halcyon, Burke está no olho da rua, justo numa idade em que as coisas começam a parecer irrecuperáveis. Prova disso é que ele já enviou dezenas de currículos e nada acontece, o que o mantém persistentemente em dúvida — propôs um salário alto demais, escreveu algo que não devia, deixou informações de fora? Jamais saberá.

Nesses dezesseis meses de paralisia forçada, a única coisa que Burke sabe com certeza é que o mercado da indústria de papel está repleto de sujeitos que, a qualquer momento, podem ser contratados na função de gerente sem que as empresas precisem ao menos treiná-los. E o pior — essa turma topa ganhar bem menos do que ganhava antes, inclusive sem nenhum benefício, só pra bater no peito e dizer: “Estou trabalhando.” Tudo isso porque a condição de desempregado impõe condições duras, anula e humilha o cara, além de abalar o casamento e a família, muitas vezes aniquilando-os. Há muito desespero por aí. Enquanto a mulher, Marjorie, sai para trabalhar — por força das circunstâncias, ela agora faz bico às segundas e quartas-feiras como recepcionista de um dentista, e aos sábados como bilheteira de um cinema —, Burke Devore resolve agir.

“Creio que a maioria das pessoas, quando são mandadas embora, veem o desemprego iminente apenas como férias imprevistas, imaginando que conseguirão vaga em outra companhia qualquer quase que imediatamente. Mas não é o que acontece. As dispensas são abrangentes demais, ocorrem em todas as indústrias e em diversos escalões. O número de empresas que demitem é muito maior do que o número de empresas que contratam. Somos mais e mais numerosos, cerca de mil por dia, e disputamos vagas cada vez mais raras.” (O Corte, p. 31).


Após divulgar um anúncio falso numa revista especializada, ele aluga uma caixa-postal e passa a receber os currículos. O objetivo é fazer uma boa filtragem e determinar quem são os seus concorrentes diretos num futuro processo de seleção que será aberto numa fábrica situada no estado de Nova Iorque. E em seguida matá-los. Burke é honesto consigo mesmo. Em termos de qualificação, os seis alvos que elegeu são profissionais um pouco superiores a ele. Um deles chega a ser surpreendente: “Eu o contrataria em vez de me contratar. O diploma de engenharia química é um espinho na minha garganta.” Além do humor negro, uma das características fundamentais neste romance de Donald E. Westlake é que ele funciona como um ensaio a respeito da angústia trazida pelo desemprego e das condições do trabalho no mundo atual.

Burke é um cara que se nega a se deixar abater. Ele não pretende cuidar do jardim de casa, ser garçom na lanchonete de alguma cidadezinha obscura ou vendedor em lojas de departamento, coisas que alguns dos seus rivais estão fazendo, enquanto aguardam com ansiedade o momento de começar de novo. Não. Burke quer o seu emprego de volta. Ele é lúcido, perdeu a fé no sistema: “Os acionistas não querem saber de nada, a não ser no retorno do seu investimento, e isso gera executivos sintonizados com os propósitos das companhias, que lideram equipes sem que lhes entre na cabeça que são compostas de seres humanos, tomam decisões sem considerar o que é melhor para a empresa, para os trabalhadores, para os produtos, para o consumidor ou mesmo para a sociedade. Eles só agem com base no retorno do investimento exigido pelos acionistas.”

Um a um, Burke Devore vai eliminando os especialistas que podem superá-lo no futuro processo de seleção da Arcadia. Talvez Burke seja uma versão contemporânea e irônica do Raskólnikov, o personagem de Crime e Castigo, de Dostoievski. Por considerá-la nociva à sociedade, Raskólnikov mata uma velha agiota a machadadas e rouba o seu dinheiro. Por acidente, acaba matando a irmã dela também. O raciocínio que o levou ao crime é que ele, estudante universitário de talento, tem um futuro brilhante pela frente, enquanto a velha usurária não fará bem algum a quem quer que seja. Portanto, Raskólnikov age com racionalismo. Burke idem. Ele quer seguir em frente, acha que tem esse direito, quer recuperar o seu lugar ao sol, mas cada vez mais as chances de um bom emprego parecem incertas e movediças.

“...tudo agora é tecnologia de transição, estou chegando a essa conclusão. Talvez seja isso que torne a vida tão difícil às vezes. Há duzentos anos, as pessoas sabiam com certeza que morreriam no mesmo mundo em que tinham nascido, pois sempre fora assim. Isso acabou. O mundo não muda apenas; atualmente, ele se agita constantemente. Somos iguais a pulgas vivendo num Dr. Jekyll que está sempre no meio da transformação para o Mr. Hyde.” (O Corte, p. 88).


O inadiável Burke Devore se transforma num assassino, uma ocupação temporária que cumpre com cruel competência. Assim que der cabo dos seus potenciais oponentes à vaga na Arcadia, sua missão estará cumprida. Depois, é só aguardar que venham chamá-lo e retomar a antiga condição de homem empregado. Os romances de Westlake costumam ser corrosivos e engraçados. É claro que a sua escrita veio evoluindo até atingir o nível de obra-prima que é O Corte, um dos romances mais bem escritos e surpreendentes que li nos últimos anos. Por tudo: pelo humor negro, pelo texto cirúrgico, enxuto, pelas descrições das cidadezinhas do estado de Nova Iorque, pela trama bem elaborada, pelo entendimento do que é o trabalho no mundo de agora e por que a falta dele pode transformar o sujeito num ser humano sem fé.

O AUTOR

Detentor do título de Grão-Mestre que lhe foi agraciado pela Associação Americana de Escritores de Mistério, o escritor e roteirista Donald E. Westlake teve várias de suas histórias que exploram o submundo do crime com nonsense, suspense e humor publicadas no Brasil pela Artenova, isso nos anos 1960/1970. Ele escreveu mais de cem novelas e romances com o próprio nome ou então usando pseudônimos. O mais célebre deles é Richard Stark, com o qual assinou as aventuras protagonizadas pelo durão Parker, um assaltante profissional, capaz de matar apenas com as mãos se for preciso. Em 1967, uma das histórias de Parker foi adaptada para o cinema e virou cult: À Queima- Roupa (Point Blank, direção de John Boorman, com Lee Marvin). Com a chamada de capa “a bárbara vingança de um homem traído e roubado”, À Queima-Roupa foi publicado pela Abril, em 1982, na coleção Edição Especial de Mistério (nº 34). A Companhia das Letras também lançou dois romances de Westlake: Dois é Demais (1996), filmado por Fernando Trueba, em 1995; e O Corte (2001), filmado por Costa-Gavras, em 2005. No ano passado, as aventuras de Parker saíram em quadrinhos aqui pela Devir. Foram reunidas sob o título de Parker, o Caçador.

Nascido em 1933 no Brooklyn, em Nova Iorque, Donald E. Westlake morreu de ataque cardíaco na noite de 31 de dezembro de 2008, enquanto passava as férias no México, aos setenta e cinco anos. No momento em que faleceu, ele estava indo para um jantar na companhia da mulher, Abby Adams. Morrer na véspera do Ano-Novo, indo para um jantar festivo, é algo que Westlake, sem dúvida, usaria numa de suas tramas. Aliás, um de seus personagens morre justamente assim, numa véspera de Ano-Novo. Só não lembro em que livro.


O CORTE
Donald E. Westlake
Companhia das Letras
2001
edição esgotada na editora

disponível na Estante Virtual
com preços a partir de 4 reais
clique aqui



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