Thursday, November 17, 2016

ONDE SE GANHA O PÃO NAO SE COME A CARNE #2 (uma crônica de Carlão Bittencourt)


“Não fica triste, não se escracha,
mulher, patrão e cachaça
em todo canto se acha”
(Adoniran Barbosa)


QUER MULHER, TRAZ DE CASA

O presidente da agência multinacional olhou a morena alta, esguia, sensual, de cabelos longos, seios empinados, e não teve jeito: tarou. Daquele dia em diante, acabou o sossego da garota. Estava rezada.

Mas o bacana da história é que ela, além de bonita, se dava ao respeito. Não tinha vocação para bandida. O alto executivo ia perder a pressa. Que o CEO pode esperar.

O problema é que, quanto mais o tempo passava, mais o assédio se intensificava. O gringo estava louco. Mandava recados pelas colegas, dava indiretas no elevador e olhares obscenos sempre que a via. Nada. A moça era o chamado impávido colosso.

Seis meses se passaram e ela não abria a guarda. Mas o mala não desistia. Afinal, era um cidadão do mundo. Tinha partido da Europa e feito uma carreira de sucesso até em Nova Iorque. Acostumado a conquistar quem e o que desejava, não pretendia deixar barato tamanha indiferença.

Um belo dia, indo almoçar com um grupo de diretores, entrou no elevador e viu a morena de mão dada com um dos redatores da agência. Sacou que tinha boi na linha. Dos grandes.

O rapaz notou, mas ficou tranqüilo. Bem brifado pela namorada, sabia das péssimas intenções do chefe para com ela. O bom cabrito não berra. Ficou na dele.

Chegou o fim do ano. Como a agência tinha faturado horrores, graças ao talento e ao sangue da mão de obra tupiniquim, os executivos da multinacional precisavam agradar o operariado. Para isso, resolveram fechar O Beco, a casa noturna mais badalada da época, só para os funcionários. Seria uma espécie de cala boca, disfarçado de festa de arromba.

Na grande noite, a casa de shows fervia. Assim como o gringo. Decidiu que daquela vez a morena não escaparia. E, para facilitar a tarefa, mandou sua secretária colocar uma placa com o nome da garota na mesa da diretoria. Ao seu lado. O cara achou que estava com a mão na taça. Ledo engano.

O redator era jovem, mas sabia das coisas. Tinha seus truques. Viu logo que o urubu malandro não iria perder aquela oportunidade para azarar a garota. Ela também estava esperta. Tanto que descobriu a armação e contou ao namorado. Tiveram uma idéia.

Chegaram cedo ao local do convescote de luxo. E, sem dar na vista, trocaram as placas com os nomes. Assim, a morena que deveria sentar junto do chefe, foi instalada na mesa da Criação, com o rapaz. E para o lugar desta, na mesa da Diretoria, remanejaram uma gordinha feiosa, porém simpática, que ficou extremamente lisonjeada de estar junto do patrão. Desta forma, antes mesmo que a orquestra começasse a tocar, o gringo já tinha dançado. Segue o baile.

Lá pelas onze horas, não tinha mais ninguém sóbrio no pedaço. Nem os garçons. Com uísque 12 anos a rodo, o pagode estava redondo. Só para variar, a mesa da Criação era a mais animada. Uma esbórnia.

De repente, pintou um clima no salão. Era o gringo, com o rosto afogueado por várias doses de aquavite, a bebida dos vikings, que ia andando pela pista de dança em direção à mesa do casal. Todo mundo queria ver o que bicho ia dar. Deu burro. Na cabeça.

Arrogante, folgado, o patrão chegou à mesa dos dois e tentou uma abordagem educada:

"Shall we dance?"

Tomou a maior tábua da noite. A garota disse que estava acompanhada. A invertida seria suficiente para fazer qualquer mortal desaparecer dentro dos sapatos. Mas o chefe era encardido. Insistiu.

"We must dance!"

Diante de nova recusa, o cidadão ainda cogitou em partir para a tréplica. Mas desistiu, ao ouvir a resposta do rapaz. Tão debochada, que colocou o cafajeste importado da Escandinávia em seu devido lugar:

"We must é o cacete, meu! Quer mulher, traz de casa!!!"


UMA DIRETORA DE ARTE DE MÃO CHEIA


Aconteceu numa agência média, no tempo em que elas ainda existiam. E eram o muro de arrimo de bons profissionais que, com mais de 40 anos, passavam a ser considerados velhos pelas agências da moda.

O redator chegou na sexta-feira ao trabalho e foi chamado pelo Diretor de Criação. O chefe foi direto ao ponto. Disse que, como o parceiro do rapaz estava de férias, tinha contratado alguém para substituí-lo naquele mês.

Era uma Diretora de Arte talentosa, que tinha voltado de Londres há pouco tempo. Ela começaria na semana seguinte. Mas recomendou ao rapaz para que tivesse respeito pela moça, que era casada com um grande amigo dele. O redator disse para ele ficar tranqüilo. E foi trabalhar.

Na manhã de segunda-feira, chegou às 10 horas na agência. Saiu do elevador, pegou um café e foi para sua sala. Quando entrou, quase derrubou o copo. Sentada na mesa do seu parceiro, estava uma das mulheres mais gostosas que tinha visto em sua vida profissional. Uma deusa. Ao descrevê-la, vamos por partes. À la Jack, The Riper.

Alta. Loira, cabelos encaracolados. Olhos azuis claros, bonitos de doer. Seios grandes, atrevidos, que dispensavam sutiã. Corpo esguio, forte, escultural. No rosto, perfeito, duas covinhas deixavam entrever uma expressão ligeiramente maliciosa. O pecado mora ao lado.

Tentando manter a compostura, o rapaz se apresentou. Ela sorriu, mostrando o impacto que dois lábios carnudos e algumas dezenas de dentes absolutamente brancos podem causar num homem. Coisa de cinema. E para terminar, ainda era chique.

O monumento vestia um longo sari indiano branco, transparente, e sandálias abertas. Sem nenhum enfeite ou qualquer espécie de acessório. Nada. Para evidenciar que a jóia era ela. Rara. Ele foi obrigado a sentar-se para disfarçar a ereção. Que mulher!

Dois dias se passaram. Foram 48 horas, 2.880 minutos e 172.800 segundos de sofrimento para o pobre. É o tal negócio: a ocasião faz o ladrão. Com aquele portento de luxúria e perdição à sua frente, não conseguia trabalhar. Só pensava bobagem. Mas não deu bandeira. Ao contrário. Conseguiu, sabe Deus como, disfarçar a monstruosa atração que sentia, com um falso ar de tédio.

Habituada a parar o trânsito, fechar o comércio e a descarrilar trens com um simples piscar de olhos, a dona não se conformou. E pior: bicho arteiro, ardiloso, resolveu enlouquecer de vez o cidadão. Era uma briga desigual: uma força da natureza contra um rato!

Na manhã do terceiro dia, ela chegou cedo. Vestida para matar. Sinta o drama. Tubinho preto, curtíssimo, e sapatos altos da mesma cor, de salto agulha. O Pão de Açúcar viria abaixo numa cruzada daquelas pernas. Fenomenais.

10 horas. O redator entrou na sala e, com ar blasé, fez que não viu aquilo para o que até o Cego Aderaldo arregalaria os olhos. Estava pondo uma folha de papel na máquina de escrever, quando a pantera negra ronronou:

"Meu bem, quanto tempo você ainda vai me deixar aqui, miando, até me comer to-di-nha?!?!?!"

Disse isso, e mordiscou sensualmente a ponta do dedo médio. Humilha, mas não tripudia. O Diretor de Criação que fosse à merda, junto com o corno do marido dela!

O rapaz apertou a trava interna da porta e traçou a gata. Em cima da mesa.


Há limites.


Carlão Bittencourt
é redator publicitário
e cronista.
É autor de
"Pela Sete - Breves Histórias do Pano Verde"
(2003, Editora Codex),
um mergulho no universo
dos salões de bilhar de São Paulo
e escreve todas as quartas
em LEVA UM CASAQUINHO.

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