Thursday, November 17, 2016

FÁBULAS SEM MORAL (uma crônica de Ademir Demarchi)


FÁBULA DE DEUS

No início dos tempos o mundo era uma bagunça. Havia deuses demais e ninguém se entendia, até o dia em que apareceu um tipo magrelo com planilha de pergaminho que se reconheceria depois como sendo uma espécie de engenheiro com pós graduação em reorganização, reestruturação e repaginação de tribos, que colocou ordem na bagunça. Ele fez isso da forma mais improvável, determinando que a partir de então haveria apenas um deus. Como ninguém se entendia, acolheram a novidade e começaram a acreditar nas lorotas de outro, uma espécie de feiticeiro que era o redator de propaganda da época, que pegou a planilha para dar um conteúdo compatível ao entendimento geral. Tão logo os dois se uniram em ideias, deus passou a existir na imaginação de todos e a primeira providência que tomou foi gramatical, pois devia ser reconhecido com maiúscula, assim: Deus. A segunda providência tomada por Ele, que logo expandiu a maiúscula para todos os pronomes, foi dizer que crescessem e se multiplicassem para fazer jus ao Seu sentido de infinito, inaugurando, com isso, uma promiscuidade copulatória que desde então, de fato, não tem fim e não conhece limites, se transformando ela mesma, como uma enorme mancha, Deus. Um desses procriados, numa dessas copulações multiplicativas, empenhado em propagar ainda mais a Palavra como a si mesmo, inventou o espelho, usado sobretudo durante a cópula, alcançando resultados surpreendentes de reprodução e representação da Ideia, que se disseminou e habita como um vírus todos indistintamente, que não param de se multiplicar para ser Ele.

FÁBULA DOS COELHOS

Os humanos, ocupados com a copulação, passaram a acreditar que foram criados segundo a imagem de Deus, ainda que fosse o contrário, alguém lembrou, e não foi ouvido, ao que outro disse que todos, ambos, humanos e Deus, são estúpidos, tal como os coelhos. Como que comprovando ser essa uma assertiva verdadeira, não atinaram para seu sentido e continuaram empenhados em sua reprodutibilidade incansável, metamorfoseando-se em eficiência e alcançando a façanha de serem hoje sete bilhões de coelhos tementes às variações da Bolsa, da Bolha, do Dólar, do Euro e dos Atentados Terroristas causados por algum desses que entendeu que depois da assertiva de Deus de que deviam crescer e se multiplicar, havia uma frase mal ouvida que dizia “encham a terra de cadáveres”, motivo de ainda mais dissidências e cadáveres. No entanto, em nada isso reprimiu a potente reprodutibilidade do mesmo, a ponto de muitos falarem em recursos escassos para atenderem a todos, sempre contraditados por outro que diz imediatamente que Deus sabe de todas as coisas e tudo que é feito é por sua mão, é, mas vai faltar recurso, alerta que ninguém ouve, afinal todos estão ocupados em se reproduzir atendendo ao Seu chamado copulativo.

FÁBULA DOS URSOS


Deus, durante sua semana de trabalho, lá nos primórdios de tudo, entre tantas atividades buscou distrações como criar variações de ursos que foi destinando a cada recanto do mundo. Seu primeiro urso foi um enorme e bravio para habitar, branco e puro, a região polar. Em nova versão, criou um gigante urso para horrorizar a Floresta Negra, tão escuro quanto ela, num contraponto gritante ao apenas aparentemente dócil urso branco e polar. Depois disso, já mais apaziguado quanto ao seu objetivo de alcançar a grande arte de criar os melhores e mais portentoso ursos, pincelou para as montanhas um urso em tons mais pastéis alcançando finalmente o meio tom cinzento ou marrom. No sexto dia, com bom humor, resolveu criar uns ursos menores e dóceis, em contraste com o que fizera, resultando em pandas vegetarianos para a região da China. No entanto, já lá pelo sétimo dia, algo enfastiado com tantas criaturas e desagradado com o resultado obtido com seus projetos de humanos, deu um bocejo de enfado e insistindo com a variação de ursos e ainda preocupado com habitar as terras chinesas, num espasmo final gerou a espécie mais fertilíssima de urso, os famosos ursinhos de pelúcia, destinados a habitar lojinhas e cavernas femininas humanas, tão logo conseguisse aperfeiçoar essa espécie.



Ademir Demarchi é santista de Maringá, no Paraná,
onde nasceu em 7 de Abril de 1960.
Além de poeta, cronista e tradutor,
é editor da prestigiada revista BABEL.
Possui diversos livros publicados.
Seus poemas estão reunidos em "Pirão de Sereia"
e suas crônicas em "Siri Na Lata",
ambos publicados pela Realejo Edições.
Suas crônicas, que saem semanalmente
no Diário do Norte do Paraná, de Maringá,
passam a ser publicadas todas as quintas
aqui em Leva Um Casaquinho







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