Thursday, November 10, 2016

NUNCA QUEREMOS VER O ÓBVIO (uma crônica de Marcelo Rayel Correggiari)



“(...) Poucos dias depois, tocamos em Birmingham.
Não sabíamos então, é lógico, que seria
nossa última apresentação como Joy Division.
Foi um bom show também.
Lançamos mais tarde no álbum ‘Still’.
Ian cambaleou um pouco durante ‘Decades’,
mas estava bem em ‘Digital’.
Mesmo assim, foi um daqueles shows
– como todos os outros naquele período –
onde você olhava para o Ian imaginando
se, ou ‘quando’, ia acontecer outra vez,
e isso era porque estava acontecendo
a cada apresentação.
Em retrospectiva, você pode olhar
para trás e dizer que ele
não ficaria bem em show nenhum,
fosse na América ou no espaço sideral.
Mesmo assim, a ideia de cancelar
ou reprogramar a turnê americana
nunca apareceu.
Nós estávamos muito a fim de ir,
completamente alucinados com a ideia
e desesperados em entrar logo no avião.
Especialmente Ian, fã do The Doors
e do Lou Reed, do Iggy Pop e de Burroughs.
Não faz a menor diferença
o que Genesis P-Orridge diz,
ele estava muito a fim de ir.
O que eu quero dizer é que tinha
muita coisa em jogo naquele momento.
O que falavam da gente é que
éramos um grande grupo
para se assistir ao vivo.
Tínhamos ‘Love Will Tear Us Apart’ na manga.
Estávamos decolando.
Isso é o que sempre sinto
quando penso no que ele fez.
Às vezes, você pode ver só
o porquê ele fez, e faz algum sentido.
Em outras, não faz porra de sentido algum."

[HOOK, Peter. “Estávamos alucinados em ir para a América”;
in: “Unknown Pleasures: Inside Joy Division”.
Sem tradução para o português.
Londres: Simon & Schuster,
2012, p. 265-266]


Essa Mercearia, com seus dias contados, mas que ainda resiste sabe-se lá por qual motivo, costuma se pronunciar sobre algum assunto a partir de um trecho literário, ou extraído de algum texto ou livro.

Há dias de Maquiavel. Em outros, vamos de Hookie que está tudo certo...

Caímos aqui na ladainha de sempre: o discurso ser um, o gesto ser outro. No caso do, então, vocalista do Joy Division, Ian Curtis, a coisa era barra-pesadíssima: assim como em sua vida privada, onde a esposa Debora Curtis tinha de conviver com a ‘consorte’ Annik Honore no que havia de pior em se ter uma vida dupla, Ian, à época, praticava dois discursos.

No final de 1979 e primeiro semestre de 1980 (até a data de seu suicídio, em 18 de maio), Ian Curtis passou a ser assolado por constantes ataques epiléticos, boa parte deles durante sua performance nos shows que fazia com a banda. Uma desgraceira: palcos quase sempre pequenos e lá ia ele levando a bateria de Stephen Morris junto.

Um inferno. O pedido de divórcio de Debora teve como grande mão no termostato a presença dos pais tanto dela quanto dele na questão do caso que Ian tinha com Annik. A pressão era tão gigantesca que Ian já havia tentado suicídio, pela primeira vez, com uma ‘overdose’ de fenobarbitais num domingo de Páscoa.

Tony Wilson, com sua esposa à época, Lindsay, tentaram mudar o padrão de pensamento e comportamento do vocalista, hospedando-o em sua casa de campo, na cidade de Charlesworth, a fim de auxiliá-lo numa eventual tentativa de salvar o casamento. Ian estava completamente desestabilizado, mas tanto Tony, assim como Alan Erasmus e Rob Gretton, todos ‘cabeças’ da lendária Factory, estavam muito mais ligados na ‘vibe’ dos demais membros da banda numa possível ‘decolagem’ do Joy Division a partir da turnê pelos EUA.

Não deu outra: o ‘misturado’ e ‘cambaleante’ Ian já praticava dois discursos. Para os membros da banda, seus amigos de longa data, bem como os demais participantes da Factory, dizia que não via a hora de estreiar a turnê nos Estados Unidos, com shows, inclusive, em Nova York. Para a patotinha ‘papo-cabeça’, que incluía Genesis P-Orridge, o pronunciamento era: “(...) prefiro morrer a sair em turnê.” (...) [sic]

Entre o primeiro discurso e o segundo, no dia 18 de maio de 1980, valeu o segundo.

A pergunta: ninguém da banda e/ou da Factory sabia do ‘segundo discurso’?!

Talvez até soubessem, tinham ‘ouvido falar’. Mas por que passaram por cima dos avisos, dos ‘sinais’?!

Às vezes, os sinais são inequívocos. Mesmo assim, por que não os vemos?!

Ou não queremos ver?!


Lacan, em sua segunda clínica, alertava para o fato das pessoas fazerem um esforço hercúleo em direção a uma ‘qualidade de vida’ ao invés de construírem uma ‘vida qualificada’. Em “Fuga de Nova York”, onde a qualidade do recurso humano é cada vez pior e muito questionável (para não dizer ‘deteriorada’), uma certa febre pela ‘liberdade de expressão’ sem se ater às consequências do tom do discurso, somada a uma vida regada por muito hedonismo e banhos-de-mar, garante desapontamentos cujas energias nos levariam a Marte.

Como dito semana passada, entre o mundo ‘ideal’, aquele existente em nossas pobres ‘cabecinhas’, e o mundo ‘real’ há um certo ‘abisminho’ difícil de transpor. Sem se pensar num ‘acordo’, combustível extremamente oportuno para a tirania.

E isso acontecendo em nossas próprias vidas, privadas, particulares... muito ‘jogo-de-cena’, muito ‘discurso’ e o gesto que sustentaria o que é dito completamente contrário.

Bem-vindos(as) à trombada: porque, óbvio, procuramos o melhor para nossas vidas. Nem sempre o melhor para nossas vidas é perfeitamente incolor, inodoro e insípido para o(a) amigo(a) próximo(a) ou vizinho(a). Em algum ponto o desejo próprio provoca no próximo algum tipo de desconforto. Se o próximo é uma samambaia, fica tudo mais ou menos bem.

A importância de se pôr ‘as cartas na mesa’: controlando a maneira como se diz certas coisas e os níveis de franqueza nas horas apropriadas, teríamos um acordo. Mas... voilá! Nem sempre fazemos isso: o ‘mundo ideal’ se impõe e ‘tome’ enquadrar o ‘mundo real’ pelo que habita nossa imaginação. Sabemos, fundamentalmente, o que é bom para nós?! Estamos com essa bola toda, mesmo?! Temos absoluta certeza de que isso, e não aquilo, é bom para nós mesmos?!

Um dos grandes sucessos de Joe Jackson, datado de 1984, dizia em seu refrão: “(...) you can’t get what you want.... until you know what you want... (...)”. Sem coisas mais simples e mais claras, é isso que acompanhamos ao longo da história: tragédias se impõem com um caminhão de sinais emitidos antes do doloroso acontecimento.

Isso é um grande mistério. Por que insistimos em não ter visto o que era absolutamente óbvio e claro diante de nossos próprios olhos?! A potência de uma vontade, de um desejo, pode ser um demônio: rouba a visão que se precisa para dar passos. Como sabemos o que é importante para nós mesmos, investimos erroneamente quantidades gigantescas de energia na manipulação para que as coisas saiam do nosso jeito ao invés de abrir espaço para o ‘acordo’.

‘Acordos’ podem ser espúrios, sim, “externalizando” excrementos (e, logo, sobrando para alguém). Contudo, para as partes diretamente envolvidas, não haveria reclamações mais a frente quanto a “... você me enganou. Não era isso que tinha em mente!”.

O ‘acordado’ não sai caro...

Só que dá trabalho e é olho-no-olho. Numa época em que neuroses são resolvidas pelo whatsapp, calculem o tamanho da merda!

Queremos tanto uma coisa em nossas vidas, alguém, um emprego, um cenário ou uma situação, que esquecemos de ler os sinais, considerando-os ‘bobagem’, pouco importantes e obstáculos que impedem o bom exercício de nossa cobiça, ou ambição.

E ‘esperamos’ ansiosamente o grande dia em que tudo aconteça do jeito que imaginamos. Só que para a imaginação, a coisa não funciona assim, porque a esperança anda de mãos dadas com o temor. A esperança de que desse praia no feriado de ontem era o temor de que estivesse chovendo; a esperança de um bom texto nessa Mercearia é o temor de se abrir o link e encontrar uma belíssima porcaria travestida de crônica.

Invariavelmente, a esperança de alguma coisa que ainda acontecerá é o temor de que essa coisa venha, ou não, a acontecer.

Concentramos na esperança de tal maneira que esquecemos de avaliar nossos piores temores. Concentramos naquilo que nos interessa (esperança) sem se dar conta de que já há sinais inequívocos de que tal efeméride não acontecerá (temor).

Viver na oscilação entre a esperança e o temor é o que Espinoza chama de “oscilação da alma”. É terrível! Viver na oscilação entre a esperança e o temor é se sentar no colo do próprio satanás; beijar a boca do ‘tinhoso’. Nada prospera, nada fica de pé.

O temor e a esperança só acontecem na ignorância quanto ao “real”. Quanto mais se sabe das coisas, menos se teme, menos se espera. Você pode até se alegrar, ou se entristecer, mas o real continuará sempre real.

O temor e a esperança estão intimamente relacionados a impossibilidade que temos de dominar todas as variáveis que agem sobre a nossa vida, sobre o nosso corpo, sobre os nossos afetos.



Marcelo Rayel Correggiari
nasceu em Santos há 47 anos
e vive na mítica Vila Belmiro.
Formado em Letras,
leciona Inglês para sobreviver,
mas vive mesmo é de escrever e traduzir.
É avesso a hermetismos
e herméticos em geral,
e escreve semanalmente em
LEVA UM CASAQUINHO


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