Thursday, January 11, 2018

CARTILHINHAS DA VIDA "MUDERNA" II (uma crônica de Marcelo Rayel Correggiari)



“(...) Isso sempre aconteceu porque cinco ou seis obtiveram a confiança do tirano e se aproximaram dele por conta própria, ou foram chamados por ele para serem cúmplices de suas crueldades, companheiros de seus prazeres, favorecedores de suas libidinagens e beneficiários de suas rapinas.

(...) Fazem dar a eles o governo das províncias ou a administração do dinheiro público a fim de tê-los na mão por sua avidez ou crueldade, para que as exerçam oportunamente e façam tanto mal que não possam manter-se senão sob sua sombra nem se isentar das leis e das punições senão graças à sua proteção. (...) (...) Todos os vícios têm naturalmente um limite, além do qual não podem passar. Dois homens, e mesmo dez, podem ter medo de um só. Mas que mil, um milhão, mil cidades não se defendam de um só homem certamente não é covardia, pois ela não chega a esse ponto, assim como a valentia não exige que um só homem escale uma fortaleza, ataque um exército, conquiste um reino. Então, que vício monstruoso é esse, que não merece sequer o título de covardia, que não encontra nome suficientemente indecoroso, que a natureza se nega a conhecer e a língua se recusa a pronunciar? (...)”

[LA BOÉTIE, Etienne de. “Discurso da servidão voluntária” (texto integral). Tradução: Casemiro Linarth – São Paulo: Martin Claret, 2009, p. 34, 64 – (Coleção a obra-prima de cada autor, 304)



Esse merceeiro que semanalmente vos fala ruborizou-se um tanto em recente colóquio feicibuquiano com a denodada cubatense, intrépida santista e laboriosa paulistana, a jornalista e escritora Goimar Dantas, quando uma confissão se revelou deveras incômoda: “Xiii... minha filha. Só ando a ler os clássicos!”.

É bom avisar ao(à) querido(a) freguês(a) que ‘playlists’ bitoladas nem sempre resultam em boa coisa. É preciso, de tempos em tempos, arejar um pouco os ares.

Em períodos bicudos, apelamos legal aos clássicos para tentarmos alguma boa resposta à velha pergunta: “Mas que caralhos isso significa?!?”. É igualmente bom avisar que nem sempre os grandes mestres também possuem alguma informação relevante, mas que passou batida.

O “toca Raul” de Étienne de la Boétie (1 de novembro de 1530, Sarlat-la-Canéda, França - 18 de agosto de 1563, Bordéus, França) recebe o singelo nome de “Discurso da Servidão Voluntária”. ‘Servidão voluntária...?!’. “Mas que caralhos é isso?!?”. Calma, querido(a) freguês(a)... já, já vai passar.

Dotado de enorme erudição calcada na melhor tradição das Letras clássicas greco-romanas, la Boétie era um francês que viveu talvez no pior período daquele país. Se Victor Hugo sentou o relho nos políticos ‘de vigésima categoria’ em obras como seu conto “Claude Gueux”, logo ele, testemunha das decisivas revoluções de 1848, por que Étienne de la Boétie não podia dar seus pitacos?!

As exemplificações para os aspectos observados por la Boétie em o “Discurso da Servidão Voluntária” são predominantemente oriundas da clássica literatura grega. O que salva parte da leitura (em especial nessa edição da Martin Claret) são as notas do tradutor Casemiro Linarth, que dá um show de pesquisa em algumas obras da antiguidade não muito populares nos dias de hoje.

“Discurso da Servidão Voluntária” tornou-se razoavelmente conhecido nos últimos tempos por dois motivos: o primeiro, por ter sido texto-base da curadoria do Prof. Leandro Karnal para uma série de quatro palestras do Café Filosófico (TV Cultura/SP) com renomados especialistas, sempre em torno do tema ‘servidão voluntária’. O segundo é o assombro de um texto escrito por alguém no século XVI dizer tanto para os(as) descolados(as) do século XXI que... supostamente... humm... acho que... sabem de alguma coisa... devem saber... será?! #sqn

A crise brasileira e a quantidade de gente sem bússola pelas ruas de qualquer cidade são combustível para que uma obra como “Discurso...” volte à pauta. Não dá para deixar de lado o “Chão-de-Estrelas” de M. Boétie (o mesmo vale para Victor Hugo) ao depararmos com chefes de executivo que mais se assemelham aos ‘capi’ de qualquer boa quadrilha.

Num mundo político-partidário coalhado de quadrilheiros, somadas as quantidades abissais de gente que precisa de um psiquiatra para ontem, há de se intuir, pelo menos, que vivemos tempos para lá de bicudos. É aqui que entra o “Asa Morena” de M. Boétie: sempre foi assim ou agora o cangaço está avacalhado?!

A resposta é bem clara: o ser humano é um bichinho craque em avacalhar o cangaço. Ponto. É o alquimista às avessas: repousem uma pepita de ouro na palma de sua mão e a merda proliferará.

Em que pese a espinha dorsal da obra de la Boétie ser sua repugnância pelo tirano, a maravilha que o embevece permanece no “... mas por que caralhos essa multidão bajula esse(a) sujeito(a)?!?”. Não é uma resposta simples. Há inúmeros componentes para que a adesão ao tirano ocorra. O “Tostines Macabro” apontado por Étienne está justamente nesse ‘aderir’ da coisa: se ninguém se associar ao tirano, ele naturalmente perde a força. ‘Id est’, a tirania só existe (e é forte) porque colocamos lenha na fogueira.

Mas... então... por que colocamos lenha nessa fogueira, ó, raios?!

A resposta continua não sendo tão simples assim. O tirano possui posição de destaque (alcançada sabe-se lá como) e muita ‘bufunfa’ no bolso. Aí, fodeu...! Com a quantidade de descamisados ao redor do domo, é querosene na churrasqueira. O que há de explicar certa ojeriza que a Marilena Chaui tem da classe-média e a velha provocação do dramaturgo Nelson Rodrigues ao amigo de seu filho, Arnaldo Jabor, quando a ‘meninada’ se reunia para produzir aquele palavrório de esquerda, com muita “... burguesia...”, “... proletariado...” e afins: “Mas... meu filho... o Homem é classe-média”.

A pobreza e eternas situações ‘sob pressão’ corroem qualquer envergadura moral que se possa ter: é nessa que caem boa parte de nossos(as) conhecidos(as) que, diante da penúria, vendem a alma para o capeta e partem, sem pestanejar, para uma espécie de ‘meretrício branco’ (no conotativo e também no denotativo, ou, como queiram, no metonímico e no literal). Aí, fodeu...! Palmas para o tirano porque ele merece.

O problema é que o tirano atenta contra a segurança (numa abordagem mais Baumaniana da bagaceira transgênica) e tudo o que ele faz é produzir o mais pútrido chorume jamais visto. Uma hora, a casa cai! Nenhum chão sobre a face da Terra vai para frente com tirano promovendo coalizão “nas coxa” (no metonímico e no literal) por intermédio de um ‘sujinho’ jogo-de-bastidores na penumbra da coxia. Super simples, caro(a) freguês(a): isso atenta contra qualquer disposição para a garantia do bom andamento da Vida. Não se é possível trabalhar, produzir, comercializar, divertir-se, passear, beijar na boca, amar se algum(a) sujeitinho(a) ‘manda e desmanda’ na porra toda e vive a mudar a regra do jogo com a partida em andamento.

Por ter deixado esse mundo na ‘idade de Cristo’, talvez faltou a Étienne de la Boétie aquela boa e velha experiência do “tempo cronológico” que nos dá uma tarimba supimpa. Talvez, com algumas décadas a mais, tivesse ele um mergulho mais profundo nas águas turvas que constroem o ser humano. E, há quatro séculos antes, chegado à conclusão de Caetano: “(...) da força da grana que ergue e destrói coisas belas (...)”. Ou a de Eça, nas linhas finais de “O Mandarim”: “(...) ó leitor, criatura improvisada por Deus, obra má de má argila, meu semelhante e meu irmão!”.

Caso a eternidade abatesse sobre ele, um provável doce sabor de seus dedos deslizarem sobre vidros de telefones celulares como a prova mais irrefutável de uma incorrigível involução.

“Discurso da Servidão Voluntária”
Autor: Étienne de la Boétie
Editora: Martin Claret
(nº 304 da série “Coleção a Obra-Prima de Cada Autor)
Edição bilíngue
Tradução: Casemiro Linarth
132 páginas
Preço: R$ 22,00 (em média)




Marcelo Rayel Correggiari
nasceu em Santos há 48 anos
e vive na mítica Vila Belmiro.
Formado em Letras,
leciona Inglês para sobreviver,
mas vive mesmo é de escrever e traduzir.
É avesso a hermetismos
e herméticos em geral,
e escreve semanalmente em
LEVA UM CASAQUINHO

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