Saturday, January 13, 2018

JOÃO e JEREMIAS - A PORRA DA HISTÓRIA (um folhetim beat de JR Fidalgo - 2ª de 16 partes)



CAPÍTULO 2

Não, não iria mexer naquilo outra vez. Sabia até onde estavam os originais de Sobre Aquilo Tudo. Estavam salvos num CD guardado em alguma gaveta ou prateleira do velho guarda roupa no quarto adaptado como escritório. E havia até mesmo alguma coisa esparsa publicada no blog, cerca de ano e meio atrás. Mas não queria mais mexer naquilo. Era assunto encerrado e devia permanecer assim.

No entanto, sabia que ali havia muitas das coisas que gostaria de repetir para ela. Às vezes, ele achava que ela havia se esquecido daquele tempo e de tudo o que tinham passado durante aquele período. Mas talvez fosse tudo bobagem. De qualquer forma, não mexeria mais naquilo.

Contudo, a lembrança daquele material, escrito há cerca de oito anos e organizado na forma do que poderia ter sido um livro – caso fosse editado e impresso -, era sintomática. Sentia que estava andando para trás e isso lhe dava medo, medo de onde isso poderia levá-lo, nos próximos dias, nas próximas semanas.

A cada dia que passava, a sensação de que estava em perigo tornava-se mais forte. E sabia que a origem  desse sentimento  vinha de dentro dele, da sua familiar incapacidade de lidar com situações que, para a maioria  das pessoas, eram normais, mas que,  para ele, se transformavam em verdadeiras batalhas entre a vida e a  morte.

Na verdade, não queria passar por tudo aquilo de novo. Primeiro, o medo da perda; depois, a perda; depois, o desespero do  vazio, e depois….sabe-se lá mais o quê. Já havia acontecido várias vezes e não existia antídoto para aquilo. A não ser…

A não ser…se transformar num nômade.

Sabia, porém, que isso não ia ser nada fácil. Às vezes se sentia um gato velho e gordo. Estava destreinado, desatento, descuidado. É o que invariavelmente acontece quando as pessoas abaixam a guarda e acham que já está tudo resolvido. É sempre um erro, sob qualquer aspecto. Então, num dia qualquer, o céu, de repente, começa a ficar escuro, cada vez mais escuro. A chuva cai pesada e quase nos afoga. Só então percebemos que havíamos esquecido como nadar. Pior ainda, descobrimos que nunca aprendemos a nadar, estávamos apenas nos agarrando a um pedaço de madeira que passou boiando ao nosso lado, quando da última tempestade.

Mas, definitivamente, não iria mais mexer naquilo.


CAPÍTULO 3

Defeito de fabricação. Cristalino como a água pura que desce da nascente na montanha. Andava para lá, andava para cá e acabava sempre no mesmo ponto. Não havia outra explicação possível. O mais engraçado – ou trágico, dependendo do ponto de vista – é que já sabia disso faz tempo. Fez, inclusive, várias tentativas, tanto para reparar os danos quanto para reduzi-los. E, àquela altura da vida, era obrigado a admitir que os resultados haviam sido ridículos. Seus pinos continuavam batendo como um carro a ponto de explodir na pista.

Só que, ao contrário das máquinas, creditava seus defeitos de fabricação não a peças mal moldadas ou erros de projeto. Suas disfunções eram resultado de um acúmulo de acidentes de percurso, caminhos equivocados e mal entendidos. E, quando se chegava àquele ponto da estrada, era difícil fazer qualquer coisa significativa a respeito. Até mesmo conformar-se com a situação parecia uma atitude estúpida.

Gostaria que, como no filme que vira com ela há alguns dias, existissem realmente anjos observando os humanos do alto dos edifícios das cidades. Não tanto pelo fato de que talvez eles pudessem ajudar ou proteger, mas sim porque a sua existência abriria novas perspectivas a respeito da vidinha que a imensa maioria dos humanos vivia aqui embaixo, no nível do chão, mesmo quando estão empoleirados nas janelas dos grandes edifícios que parecem chegar até as nuvens. A existência de anjos, porém, era improvável. Assim, ele teria que procurar qualquer outro atalho, se quisesse continuar trafegando naquela estrada que, a cada curva, ficava mais estranha e sem sentido.

Estava delirando sobre todas essas coisas, deitado no sofá, com os olhos fixos no vaso de flores em cima da mesa, quando foi tomado por uma daquelas incontroláveis e inexplicáveis sensações de pânico. Quando isso acontecia, só havia uma saída, deslizar rapidamente para a rua.

Estava lá, pichado na parede do velho armazém de café abandonado: “Eu te amo, Ana Marlow”.

Quem seria Ana Marlow, e quem estaria apaixonado por ela?

Será que Ana Marlow ainda estava viva? E quem pichou aquela frase na parede do armazém abandonado, ainda estaria vivo? Ou será que Ana Marlow era apenas uma musa imaginária de algum vagabundo louco que vivia por aquelas ruas?
Impossível saber quem era Ana Marlow ou mesmo se ela existia.

No entanto, era um nome bonito. “Ana Marlow, a rainha do gueto!”

Ele pensava essas bobagens quando resolveu fazer uma coisa que não fazia há muitos anos: sentar numa praça. E aquela era a principal praça da área central da cidade. Como era hora do almoço, havia bastante gente circulando pela praça, a maioria, com certeza, pessoas que trabalhavam por ali. Então ele começou a refletir sobre a função das praças nas cidades.

Concluiu que as praças eram lugares onde a gente sentava para não fazer absolutamente nada, ou apenas para ver as pessoas passarem, ou somente para pensar, como ele estava fazendo naquele momento. Mas as praças também eram locais onde a gente ia para encontrar outras pessoas.

E em outros tempos, ele lembrou, as praças também serviam para as pessoas realizarem manifestações, a favor ou contra determinadas coisas.

Percebeu, então, que as praças, principalmente nas cidades maiores, estavam perdendo sua função, já que poucas pessoas as utilizavam para sentar e não fazer absolutamente nada, nem para ver as pessoas passarem, nem para pensar, nem para encontrar as outras pessoas, nem para se manifestarem a favor ou contra seja lá do que for.

As praças estavam se transformando em simples locais de passagem ou em lugares onde se dava um tempo até a hora de voltar para o emprego, como acontecia naquela praça, onde ele agora estava sentado.

Mas que diabo queria dizer aquilo?

“Compreenda a influência do humano em tudo”.

A frase estava estampada na camiseta de um rapaz que passava pela praça acompanhado de uma garota. Nunca tinha visto nenhuma camiseta com aquilo escrito. Aliás, nunca tinha visto aquilo escrito em nenhum lugar.

“Compreenda a influência do humano em tudo”.

Se fosse a influência do divino, seria fácil de entender. A camiseta estaria. quem sabe, divulgando algum movimento religioso ou coisa parecida. Mas a influência do humano?

Quem estaria exaltando – ou criticando, o que também era possível – a influência do humano em tudo?

Saber essa resposta não era, com certeza, a preocupação do funkeiro que passava logo a seguir por ali, ouvindo um “proibidão” no seu celular. Então, o cara deu uma sentada num dos bancos, esperou o “proibidão” terminar, fechou o celular e saiu andando.

Doido por doido, ele se identificava mais com o sujeito que arrastava um saco de lixo de plástico preto de um lado pra outro da praça, reclamando em voz alta não se sabia do que nem pra quem.

Reparou, então, que apenas os doidos – e sempre havia vários deles nesses locais – ainda davam a devida importância às     praças das cidades, já que, em geral, faziam delas seus territórios de resistência e sobrevivência.

Se continuasse a elaborar teorias como aquela – e principalmente se começasse a acreditar nelas -, em breve acabaria transformando uma das praças da cidade no seu território de resistência e sobrevivência. Afinal, virar mais um vagabundo doido de rua era algo que sempre freqüentara seus delírios, quando pensava em opções para o futuro. Sendo assim, achou que era melhor levantar-se e continuar caminhando.

Já tinha refletido bastante sobre praças, vagabundos e loucos.

Era hora de cuidar da vida e isso significava ir a uma farmácia comprar os medicamentos que nos últimos tempos era obrigado a ingerir diariamente. Estava fazendo seu pedido ao balconista da farmácia quando percebeu um vulto se aproximando à direita.

O homem insistia em que ele lhe desse um trocado. Ele disse que não tinha.

O homem continuou insistindo.

Ele, irritado com o assédio, repetiu em voz alta que não tinha trocado, “porra!”.

O homem finalmente se afastou.

Ele continuou pedindo os remédios, depois foi até o caixa e pagou.

Diabos, por que não dera um trocado ao sujeito?

Ele não tinha trocado mesmo, justificou-se. Mas ele sabia que não era isso.

Ele sabia que não dera um trocado ao homem porque sempre se sentia acuado com aquele tipo de situação e sempre reagia de forma agressiva.

Saiu da farmácia e foi até a padaria da esquina tomar um café, ainda ruminando a sua atitude diante do pedinte. Enquanto tomava o café, percebeu o mendigo que o abordara na farmácia se aproximando do caixa e depois do balcão da padaria.

“Uma pinga, já está paga”, disse ele ao copa, que rapidamente o serviu.

O homem entornou rapidamente o álcool na garganta, virou as costas e saiu da padaria. O homem finalmente havia arrumado um trocado.

Ele acabou seu café e foi embora.

Em geral, pensou ele, as pessoas ficariam satisfeitas de terem negado uma esmola que se transformaria em cachaça no balcão mais próximo. Ele, porém, continuava se culpando por não ter dado o trocado ao homem que o abordara na farmácia.

Ele sabia que aquele homem precisava desesperadamente matar a sua sede.

Contudo – e apesar de tudo -, ele tinha de continuar caminhando.

Então, quando se dirigia a uma livraria, cruzou com um colega dos tempos de faculdade, que fingiu não conhecê-lo.

Normalmente, ele agradeceria por aquilo, já que ele próprio vivia evitando cumprimentar pessoas nas ruas com as quais não ia muito com a cara. No entanto, sem saber bem por que, naquele momento a atitude do ex-colega de faculdade o irritou, fazendo-o murmurar baixinho entre os dentes para o sujeito que passava: “Babaca de merda!”

Depois, lembrando dos ensinamentos da sua mãe e das reflexões do seu terapeuta, questionou-se se, por acaso, sua hostilidade contra o ex-colega de faculdade não era motivada pelo fato do sujeito ter, aparentemente, se dado bem melhor na vida do que ele, pelo menos no quesito dinheiro. Mas logo chegou à conclusão de que não gostava de playboys, fossem eles ricos, pobres ou marcianos.

Aí perguntou a si mesmo: “E o que diabo vem a ser um playboy?”.

“Ora, você sabe muito bem do que estou falando”, respondeu, dando-se por satisfeito com a própria resposta.

Entrou na livraria e se tocou de que não fazia a mínima idéia do motivo que o levara até ali. Ficou por um tempo observando os livros nas prateleiras e, de repente, chegou à conclusão de que definitivamente não gostava de livrarias.

Então se perguntou por que diabos vivia entrando em livrarias e por que insistia em escrever livros. Afinal, onde ele imaginava que os livros que talvez um dia escrevesse pudessem ser vistos e comprados a não ser em livrarias?

Dessa vez não tinha nenhuma resposta satisfatória para as perguntas que vivia fazendo a si mesmo enquanto caminhava.

Por isso continuou andando, agora em direção à praia.

Sentou-se num dos bancos próximos à areia, ajustou os fones do mp3 e ficou olhando o mar no meio da tarde de sol.

Sentiu-se um idiota ali, sentado naquela praia, naquele meio de tarde, com uma seqüência de músicas antigas dos Rolling Stones entrando, uma após outra, pelos buracos dos seus ouvidos.

Aos poucos, porém, começou a se sentir bem, muito bem mesmo.

Estava no local certo, na hora certa, fazendo a coisa certa.


Então, se perguntou: “Onde andará Ana Marlow?”


JR Fidalgo: um jornalista
que tem preguiça de perguntar,
um escritor que não tem saco
pra escrever e um compositor
que não sabe tocar.

(mas que, mesmo assim,
já escreveu três romances
e uma quantidade considerável
de canções ao longo
dos últimos 45 anos)

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