Friday, January 19, 2018

O FILME DA SEMANA É "ME CHAME PELO SEU NOME", QUE ARRASOU NO SUNDANCE 2017



O beijo caloroso de raios de sol a banharem um corpo relaxado numa tarde de verão, a segurança sentida ao ouvir uma voz paternal proferir palavras de conforto, a excitação do desejo sexual, o fulgor que acompanha o desabrochar do primeiro amor, a dor que acompanha memória de uma alegria perdida nas águas do passado – todas estas sensações desafiam a documentação, para nada dizer da descrição verbal ou discurso analítico. No entanto, tal dificuldade não dissuadiu o realizador Luca Guadagnino de as tentar cristalizar em cinema com o seu mais recente filme, uma adaptação do romance de André Aciman intitulado “Me Chame Pelo Seu Nome”. O maior mistério de todos é como é que o cineasta italiano conseguiu fazer isso mesmo, criando um dos romances cinematográficos, dos últimos tempos, mais loucamente inebriados no poder imersivo do cinema e seu potencial para funcionar como uma máquina de empatia.

A ação situa-se principalmente no verão de 1983, no norte de Itália, onde o diretor de fotografia Sayombhu Mukdeeprom tudo pinta com a luz cálida que esperaríamos ver numa reveria campestre de Renoir ou nos contos estivais de Rohmer. Nesse paraíso terreno, encontramos Elio, o filho prodigioso de um professor universitário americano, cuja atenção é inexoravelmente conquistada pela presença de Oliver, um estudante do seu pai que, como é tradição familiar, ficará algumas semanas na casa italiana a servir de assistente ao académico. Silêncio embebido de desejos engolidos a seco dão lugar ao deflagrar de paixão mútua entre os dois homens, cujas semanas em secreta comunhão romântica e sexual se revelam como festins de vulnerabilidade e felicidade nunca antes sentidas por ambos. Apesar da época em que se passa, a ameaça de opressão social sobre os dois amantes do mesmo sexo raramente se manifesta, sendo esta a impressão radiosa de um primeiro amor potencialmente tão efémero como o verão ou a vitalidade da juventude.
Tal como o livro de Aciman, o filme, parcialmente escrito pelo cineasta americano James Ivory, foge a muitos dos maiores clichés e debilitantes fórmulas do cinema LGBT+, preferindo explorar a especificidade queer do seu romance sem o subjugar a estruturas preconcebidas de desenvolvimento narrativo. Essa especificidade manifesta-se principalmente na abordagem formal, especialmente no que diz respeito a movimentos de câmara e composição, sendo a económica utilização de grandes planos definidores de trocas de olhares luxuriantes de particular destaque. Essas imagens tão cuidadosamente ancoradas pelas faces dos atores realçam também o modo como os atores, em parelha com a formalidade sensualista de Guadagnino, conseguem sugerir a interioridade das suas personagens, sem que o guião tenha de se apoiar nessa tão comum muleta das adaptações literárias ao cinema – a narração voz-off.

Timothée Chalamet consegue criar em Elio o tipo de prestação que faria de qualquer narração uma obsolescência perversa, sendo que toda a miríade de reflexões autocríticas e infindáveis indagações sobre os comportamentos de Oliver brilham no olhar do ator e são materializados em cada mudança de postura e forma de andar na presença do objeto de desejo do jovem.
 Chalamet é particularmente soberbo na sua rendição aos epítetos de vulnerabilidade exigidos pelo argumento, quer seja no choro que se segue a uma despedida dolorosa na estação de comboios, ou na muito falada cena em que Elio se masturba com o auxílio de um pêssego e acaba por se desfazer em lágrimas nos braços do seu amado depois de este tentar saborear o esperma misturado com os sucos do fruto. Essa e outra cena, em que Elio se contorce com os calções usados de Oliver sobre o rosto são dos momentos mais decididamente sexuais do cinema de 2017, mas são também dos mais emocionalmente poderosos – sugerindo a confusão avassaladora de alguém que nunca sentiu o que está agora a experienciar no corpo e mente, assim como a total subjugação de alguém aos seus mais secretos desejos.
Desejo é um tema central em “Me Chame Pelo Seu Nome”, sendo que o próprio realizador já caracterizou a obra como um capítulo final numa trilogia temática em volta do desejo cujos outros títulos são “Eu Sou o Amor” e “Mergulho Profundo”. Como tal, a concretização humana do objeto de desejo de Oliver não é um papel a ser menosprezado e, pela sua parte, Armie Hammer faz milagres com o pouco que a perspetiva subjetiva do filme lhe concede. Simultaneamente uma ilusão antropomórfica de desejos projetados pela mente de um adolescente embriagado de amor, assim como um ser humano de carne e osso com uma vida interior própria, Oliver é uma figura de mistério e sedução, mas nunca distante ou alienante na sua reticência. Chegada a segunda metade do filme, a audiência está praticamente tão investida nas emoções do estudante americano como nos sentimentos do seu amado, especialmente devido ao modo como Hammer nos permite ver vislumbres do homem que nem mesmo Elio conhece, aquele que contempla o seu amante com afeto mesclado de dolorosa insegurança após o seu primeiro encontro sexual, por exemplo.

Na verdade, todo o elenco do filme é estupendo e acaba por resolver muitos dos problemas da sua origem literária, onde as personagens femininas parecem esboços inacabados e a realidade humana de Oliver está sempre meio inalcançável. Por muito brilhantes que Amira Casar e Esther Garrel possam ser nos respetivos papéis de mãe e amiga de Elio, é Michael Stuhlbarg como o pai do jovem que tem justamente recebido a maior atenção da crítica. O professor Perlman é o tipo de pai que qualquer jovem da comunidade LGBT+ pode sonhar ter, compreensivo, carinhoso e portador de uma sagacidade bem escondida. Stuhlbarg dá vida a este ideal com descontraída jovialidade, fazendo de cenas de refeição filmadas em planos gerais imóveis autênticas montras para as suas deliciosas reações silenciosas e dando vida a um discurso que dificilmente será esquecido por quem tiver o privilégio de ver “Me Chame Pelo Seu Nome”.
Em tantos outros dramas românticos, a temporalidade limitada da paixão é vista como uma tragédia, mas Stuhlbarg, através das palavras de Ivory e Aciman, manifesta-se contra tais ideias, oferecendo ao espetador um monólogo que remata esta longa narrativa de desejos não verbalizados com um necessário fôlego de palavras, tão generosas quão abundantes. Seguindo a mesma linha orientadora do estilo sensorialmente imersivo do filme, este monólogo celebra a emoção e apela à valorização até da dor. Afinal, o que é a dor da paixão perdida, do que uma confirmação do seu poder? Para quê desejar não sentir nada, quando há tanta beleza até nos sentimentos mais dolorosos? Valerá a pena extinguir a chama do amor para se evitar o sofrimento? Não é a resposta do filme que, mesmo no seu longo e muito lacrimoso plano final parece recusar encarar tais lágrimas como algo merecedor de arrependimento.

Continuar a escrever sobre “Me Chame Pelo Seu Nome” é um exercício fútil. Este é um filme que se sente, não um filme que se explica. Tais palavras têm o sabor nauseante de um cliché mais velho que o cinema, mas não deixam por isso de trespassar considerável verdade. Por muito que o monólogo de Stuhlbarg faça uma boa sintetização de alguns dos maiores temas da obra, há tantas outras complexidades que merecem ser descobertas individualmente por cada membro da audiência a seu tempo, a seu ritmo e sua vontade. “Mistérios do Amor” é o título de uma das duas canções originais que Sufjan Stevens compôs para o filme e é também algo que o cinema muitas vezes tentou documentar sem sucesso. Bem, pelo menos foi um esforço infrutífero antes da existência de “Me Chame Pelo Seu Nome”.


ME CHAME PELO SEU NOME
(Call Me By Your Name, 2017, 132 minutos)

Direção
Luca Guadagnino

Roteiro
James Ivory
Oliver Fasano
Luca Guadagnino

Música
Sufjan Stevens

Elenco
Armie Hammer
Timothée Chalamet
Michael Stuhlbarg

Cotação

em cartaz no Pátio Iporanga 4
no Cinemark Praiamar
e no Cinespaço Miramar


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