Saturday, January 20, 2018

JOÃO e JEREMIAS - A PORRA DA HISTÓRIA (um folhetim beat de JR Fidalgo - 3ª de 16 partes)



CAPÍTULO IV

A questão era que tudo ficava cada vez mais sem sentido. A cidade não fazia mais sentido, as coisas em que acreditava não muito tempo atrás não faziam mais sentido e, principalmente, ele próprio não fazia mais sentido nenhum. Não que, em algum momento até ali, as coisas chegassem a fazer totalmente sentido. Isso jamais havia acontecido. Houve, no entanto, algumas ocasiões em que sua vida parecia encaminhar-se para algum ponto de convergência, se não plenamente percebido na época, pelo menos pressentido um pouco mais à frente, perspectiva que bastava para continuar adiante. Mas agora, lá na frente, só havia uma névoa densa, muito densa e até certo ponto assustadora.

Caminhar por horas pelas ruas da cidade para chegar a essa conclusão não era propriamente um resultado animador. Podia ter continuado em casa, deitado no sofá, com os olhos fixos no vaso de flores em cima da mesa. Teria concluído a mesma coisa – e se cansado bem menos. Sabia, no entanto, que o cansaço que seu corpo sentia, resultado dos quilômetros percorridos nas ruas, tinha também uma função importante: reduzia sua pressão sanguínea, os batimentos cardíacos e, principalmente, aquele ruído na sua cabeça e a sensação de que o ar estava rarefeito ao seu redor.

O interessante é que, às vezes, do nada, surgia uma espécie de premonição de que realmente havia algum sentido. Ele só precisava se colocar no lugar certo, fazendo a coisa certa e tudo se encaixaria. Como naquele momento, lá sentado na praia, ouvindo velhas músicas dos Stones. O problema é que esses momentos eram muito breves. Logo as peças novamente se mexiam e a unidade se perdia mais uma vez. Então o “deserto” e a busca pela terra prometida voltavam à ordem do dia.

Tentou explicar isso a ela, dias atrás, sem muito sucesso. Ela insistia em achar que ele era um cara     “bem mais resolvido” do que ela. Não sabia exatamente o que ela queria dizer com “bem mais resolvido”, mas tinha certeza de que a definição não se aplicava a ele. Além dele próprio, talvez só o seu terapeuta tivesse uma idéia mais aproximada da quantidade de ratos que circulavam pelo sótão do seu cérebro cansado.

Ainda há pouco, sentado na privada, dando uma cagada, lia uma entrevista antiga de Bono Vox, onde o cantor afirmava que precisava ter uma casa construída em cima de uma rocha firme – no seu caso, ao que parece, a crença no Deus lá dele -, porque, embora as águas no momento estivessem baixas, ele, mais cedo ou mais tarde, sempre trazia a tempestade pra dentro de casa.

De vez em quando alguém dizia alguma coisa que ele certamente diria sobre si mesmo. Aquela era uma delas.

Mais cedo ou mais tarde, ele sempre trazia a tempestade, pra dentro de casa, pra dentro dele. Por isso, precisava da tal rocha para construir sua casa. O problema é que ele percebia as águas ao seu redor cada vez mais agitadas, subindo e subindo, sem que ele avistasse nenhuma rocha nas proximidades.

“A escrita é cheia de influência de mestres norte-americanos, como John Fante e Charles Bukowski, caras que são citados ao longo do livro. Bukowski aparece no lado mais imaginário, como nas conversas que o autor tem com o pequeno vertebrado. Já Fante está presente na parte marginal, do homem que quer ser escritor famoso e vive num quarto de hotel ao lado de prostitutas, vizinho do porto.”

O garoto havia lido A Porta dos Fundos do Paraíso e escrito uma espécie de resenha no blog dele. Cada vez que sabia que alguém, com a idade daquele garoto, havia tido saco de ler A Porta dos Fundos do Paraíso e, ainda por cima, escrever algo a respeito, ele ficava de certa forma surpreso e, de certa forma, feliz. Surpreso porque jamais imaginou que garotos daquela idade se interessassem pelo tipo de coisa que ele escrevera no livro; feliz porque aquilo era uma espécie de prova de que, apesar de tudo, a garrafa com a sua mensagem continuava navegando e chegando a mãos que ele considerava improváveis, quando a lançou no mar.

Contudo, o que mais chamou a sua atenção ao ler a resenha do garoto não foi nada disso, mas sim a menção a Bukowski. Naquele dia, pouco antes, enquanto caminhava como um coiote perdido, tinha se lembrado de uma frase de Bukowski: “Eu tenho um caso de amor com as ruas dessa cidade.” A frase, escrita em um de seus livros ou incluída em alguma das raras entrevistas que deu durante toda a sua vida, referia-se às ruas de Los Angeles, por onde Bukowiski circulou a maior parte da sua vida e que serviram de inspiração para grande parte de sua obra.

Ele, porém, não tinha uma relação apenas de amor com as ruas da cidade onde vivia – e que era muito diferente da Los Angeles de Bukowski. Sua relação com aquelas ruas e com aquela cidade era também de ódio, amor e ódio. Aliás, nos últimos tempos, o ódio estava se sobrepujando de maneira cada vez mais incisiva e aparentemente irreversível ao amor.

Bom, mas isso não fazia diferença, já que nada faz diferença quando nada começa a fazer sentido. Portanto, foda-se a cidade, fodam-se as suas ruas. Foda-se Los Angeles. Ah, foda-se o Bukowski também. Que Deus – ou o Demônio, se ele preferir – o tenha!

E, é claro, foda-se A Porta dos Fundos do Paraíso!



CAPÍTULO V

Tinha certeza de que mergulharia em cenários estranhos do passado. Mesmo assim, dobrou a esquina. A “rua principal” continuava lá, com a loja de artigos de pesca, outra de ferragens, outra de ervas e velas…
Parou em frente à loja que vendia pássaros e rações e ficou observando três aves em exposição numa gaiola redonda. Tivera uma daquelas em casa, anos atrás.

Chamava-a de Maria, embora não soubesse se era um macho ou uma fêmea. Até hoje não descobrira o nome daquela espécie de ave, mas talvez, um dia, resolvesse levar outra Maria para casa.

Prosseguiu a expedição de reconhecimento pela “rua principal”, constatando que alguns bares haviam fechado. Até os bares estavam em decadência, pensou. Em todo o caso, os que tinham resistido até que estavam cheios, para aquela hora da manhã. Lembrou-se, então, que era domingo, e que muitas das pessoas que estavam nos bares deviam estar emendando a noite do sábado. Em outros tempos, teria ficado por ali, mas como os tempos eram outros, continuou caminhando.

Os casarões antigos também resistiam, embora, se nada fosse feito com urgência, eles simplesmente ruiriam, da noite para o dia, ou do dia para a noite.

O velho mercado também continuava de pé. Na verdade, conforme lera nos jornais, havia sido reformado há não muito tempo. No entanto, para ele, o grande prédio tinha agora o aspecto de um enorme edifício-fantasma.

Mesmo que algumas pessoas caminhassem por seu interior e que alguns boxes continuassem a funcionar, vendendo frutas e verduras, não conseguia livrar-se da sensação de estar percorrendo uma imensa casa mal-assombrada.

Enquanto ouvia o barulho de seus próprios passos no saguão principal, teve uma breve alucinação.

O saguão, de repente, ficou cheio de gente indo e vindo, carrinhos transportando mercadorias para dentro e para fora, aroma de café expresso da lanchonete que funcionava logo na entrada misturando-se ao cheiro inebriante da grande variedade de frutas expostas em dezenas de bancas coloridas.

Sentiu-se um pouco tonto com aquela repentina e intensa profusão de odores, cores e sensações. Voltou ao presente e caminhou em direção aos fundos do mercado. Passou por vários espaços vazios e fechados por grades.

Chegou à parte de trás do prédio, onde as peixarias e os pequenos armazéns já não existiam mais. Grades enferrujadas também cercavam essas áreas agora desertas. Avistou finalmente os pequenos barcos, as catraias flutuando na água escura e suja do mar.

Avistou também um grupo de moradores de rua, homens e mulheres, discutindo em voz alta sobre alguma coisa a ver com uma garrafa que alguém havia quebrado ou roubado.

Prosseguiu pela calçada que contornava externamente o mercado e viu três ou quatro bares do outro lado da rua. Também estavam relativamente cheios para aquela hora da manhã, mas era evidente que os “clientes” estavam bem mais altos do que os freqüentadores dos bares da “rua principal”.

Recordou-se que, no seu tempo, aquela dicotomia etílica e toxicológica entre os bares das duas regiões já existia.
Lembrou-se também do pequeno e estreito bar onde, no seu tempo, só ia para comer e nunca para beber. E lá estava o bar, bem do outro lado da rua, que ele atravessou devagar, sob o sol quente daquela manhã de domingo.

Embora mais velhos, o casal de portugueses e os dois filhos ainda continuavam por ali, fazendo salgadinhos e sanduíches e servindo uma freguesia que parecia, como antes, sempre fiel. Felizmente, nem o homem nem a mulher, nem os dois rapazes o reconheceram, ou talvez tivessem fingido que não se lembravam dele. Pediu um pastel de camarão e uma Coca.

O pastel continuava excelente.

Pensava nisso e se perguntava por que aquela família permanecia ali, levando aquela vida que lhe parecia tão dura, em meio a uma vizinhança aparentemente tão hostil. Parecia óbvio que, àquela altura, já deviam ter acumulado dinheiro suficiente para mudar para outro local, mais agradável e menos perigoso.

A mãe e o pai já eram bem idosos e os filhos, dois homens maduros, provavelmente já eram casados e tinham suas respectivas famílias. Mas lá continuavam eles, servindo as pessoas, às vezes sorrindo entre si, às vezes fazendo comentários sobre bêbados ou mendigos que passavam pela rua em frente. Era incrível como o “sentido de família” parecia resistir e se sobrepor a tudo.

Saboreando o último pedaço do pastel, ele teve noção de que estava presenciando uma cena única, protagonizada por pessoas especiais, apesar da banalidade que tudo aquilo pudesse aparentar. Sem saber direito o motivo, sentiu-se emocionado e teve uma certa inveja daquelas pessoas, daquela família.selo 1

Saiu do pequeno e estreito bar e foi caminhando de volta à “rua principal”. Mas, ao chegar à esquina, deparou-se com vários homens, de diversas idades, sentados, em fila, nas soleiras das quatro ou cinco primeiras casas da rua transversal.

Todos, de um jeito ou de outro, tinham a expressão da derrota estampada em seus rostos e, em certo sentido, pareciam ter ultrapassado o limite do simples desespero, adentrando num distante e profundo pântano, onde, apesar da desolação e do isolamento, talvez houvesse uma certa paz, advinda da definitiva, avassaladora e irreversível resignação.

Que diabo estariam aqueles homens fazendo ali, sentados em fila em soleiras de portas, numa manhã de domingo de sol? O que estavam eles esperando acontecer? Teve receio de aproximar-se e perguntar, mas percebeu, com extrema clareza, que, por mero acaso ou capricho dos deuses, não estava também ali, naquele momento, sentado nas soleiras daquelas portas, naquela fila, esperando sabe-se lá o quê.

Voltou a se sentir meio tonto e, quando deu por si, tinha se afastado da “rua principal” e dobrado mais uma esquina. Lembrava-se também daquela rua transversal. Era ali que, vez ou outra, almoçava num restaurante japonês que ficava no meio da segunda quadra. E, como outros “fantasmas”, o restaurante, embora fechado, talvez devido ao horário, continuava lá.

No final da rua, junto a um canal de águas pluviais, deu de cara com uma feira de trocas de objetos velhos e roupas usadas. Ficou algum tempo perambulando entre os mais variados tipos de quinquilharias, que pareciam interessar a muita gente, visto o grande número de pessoas que também perambulava pelo local e examinava as ofertas estendidas ao longo das calçadas.

O que alguém faria com um liqüidificador tão velho como aquele? E o secador de cabelos, será que ainda funcionava? Quem compraria um fogão tão detonado assim? E os discos de vinil, será que alguém teria para vender também uma vitrola capaz de tocá-los?

Absorto por esses pensamentos, não percebeu que estava bem na esquina da rua onde havia morado, aos 10 ou 11 anos de idade. Dobrou mais uma esquina e sentiu novamente aquela tontura, agora já bem familiar. Poucas vezes teve sensação tão forte de como o tempo transformava radicalmente certos cenários do passado.

Não era, logicamente, uma cena de guerra, mas apenas e tão somente porque nos combates ali travados não haviam sido utilizadas armas de grande poder de destruição. Mas que uma batalha cruel acontecera naquela rua ninguém poderia negar. Como também era impossível não perceber que só os perdedores continuaram a viver no local.

Não restara uma única casa que não estivesse necessitando de reparos de emergência, pois todas davam a impressão de estarem abandonadas há longo tempo, embora fosse óbvio que eram habitadas. Parou finalmente na casa onde morara, que tinha sido transformada numa habitação coletiva. Aliás, várias casas da rua haviam tido o mesmo destino. Na última quadra, bem perto da esquina, três homens, sentados ao redor de uma carroça, em frente a uma casa quase em ruínas, passavam uma garrafa entre si e conversavam alto numa língua que ele, por mais que tentasse, não conseguia compreender.

Aquilo estava se tornando uma espécie de vício. Às vezes pela manhã, às vezes à tarde, ele colocava um bloco de notas e uma caneta no bolso e saía caminhando pela cidade. O objetivo era sempre o mesmo: encontrar um lugar onde se sentisse à vontade, para sentar e anotar pontos de referência em torno dos quais, posteriormente, começaria a contar uma história.

Ele, contudo, raramente se sentava em algum lugar durante essas caminhadas, que só terminavam quando se sentia totalmente esgotado e se arrastava de volta para casa. Seu bloco de notas permanecia vazio, mas sua cabeça havia se transformado num grande e caótico arquivo, alimentado pelas cenas que, durante suas caminhadas, iam sendo registradas por sua mente, se misturavam com suas memórias e davam forma a um filme que jamais teria fim e nunca seria assistido por alguém.

No dia seguinte, no entanto, ele colocava o bloco de notas e a caneta no bolso e saía novamente pela cidade.

bukowski


JR Fidalgo: um jornalista
que tem preguiça de perguntar,
um escritor que não tem saco
pra escrever e um compositor
que não sabe tocar.

(mas que, mesmo assim,
já escreveu três romances
e uma quantidade considerável
de canções ao longo
dos últimos 45 anos)


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