CAPÍTULO
IV
A
questão era que tudo ficava cada vez mais sem sentido. A cidade não fazia mais
sentido, as coisas em que acreditava não muito tempo atrás não faziam mais
sentido e, principalmente, ele próprio não fazia mais sentido nenhum. Não que,
em algum momento até ali, as coisas chegassem a fazer totalmente sentido. Isso
jamais havia acontecido. Houve, no entanto, algumas ocasiões em que sua vida
parecia encaminhar-se para algum ponto de convergência, se não plenamente
percebido na época, pelo menos pressentido um pouco mais à frente, perspectiva
que bastava para continuar adiante. Mas agora, lá na frente, só havia uma névoa
densa, muito densa e até certo ponto assustadora.
Caminhar
por horas pelas ruas da cidade para chegar a essa conclusão não era
propriamente um resultado animador. Podia ter continuado em casa, deitado no
sofá, com os olhos fixos no vaso de flores em cima da mesa. Teria concluído a
mesma coisa – e se cansado bem menos. Sabia, no entanto, que o cansaço que seu
corpo sentia, resultado dos quilômetros percorridos nas ruas, tinha também uma
função importante: reduzia sua pressão sanguínea, os batimentos cardíacos e,
principalmente, aquele ruído na sua cabeça e a sensação de que o ar estava
rarefeito ao seu redor.
O
interessante é que, às vezes, do nada, surgia uma espécie de premonição de que
realmente havia algum sentido. Ele só precisava se colocar no lugar certo,
fazendo a coisa certa e tudo se encaixaria. Como naquele momento, lá sentado na
praia, ouvindo velhas músicas dos Stones. O problema é que esses momentos eram
muito breves. Logo as peças novamente se mexiam e a unidade se perdia mais uma
vez. Então o “deserto” e a busca pela terra prometida voltavam à ordem do dia.
Tentou
explicar isso a ela, dias atrás, sem muito sucesso. Ela insistia em achar que
ele era um cara “bem mais resolvido”
do que ela. Não sabia exatamente o que ela queria dizer com “bem mais
resolvido”, mas tinha certeza de que a definição não se aplicava a ele. Além
dele próprio, talvez só o seu terapeuta tivesse uma idéia mais aproximada da
quantidade de ratos que circulavam pelo sótão do seu cérebro cansado.
Ainda
há pouco, sentado na privada, dando uma cagada, lia uma entrevista antiga de
Bono Vox, onde o cantor afirmava que precisava ter uma casa construída em cima
de uma rocha firme – no seu caso, ao que parece, a crença no Deus lá dele -,
porque, embora as águas no momento estivessem baixas, ele, mais cedo ou mais
tarde, sempre trazia a tempestade pra dentro de casa.
De
vez em quando alguém dizia alguma coisa que ele certamente diria sobre si
mesmo. Aquela era uma delas.
Mais
cedo ou mais tarde, ele sempre trazia a tempestade, pra dentro de casa, pra
dentro dele. Por isso, precisava da tal rocha para construir sua casa. O
problema é que ele percebia as águas ao seu redor cada vez mais agitadas,
subindo e subindo, sem que ele avistasse nenhuma rocha nas proximidades.
“A
escrita é cheia de influência de mestres norte-americanos, como John Fante e
Charles Bukowski, caras que são citados ao longo do livro. Bukowski aparece no
lado mais imaginário, como nas conversas que o autor tem com o pequeno
vertebrado. Já Fante está presente na parte marginal, do homem que quer ser
escritor famoso e vive num quarto de hotel ao lado de prostitutas, vizinho do
porto.”
O
garoto havia lido A Porta dos Fundos do Paraíso e escrito uma espécie de
resenha no blog dele. Cada vez que sabia que alguém, com a idade daquele
garoto, havia tido saco de ler A Porta dos Fundos do Paraíso e, ainda por cima,
escrever algo a respeito, ele ficava de certa forma surpreso e, de certa forma,
feliz. Surpreso porque jamais imaginou que garotos daquela idade se
interessassem pelo tipo de coisa que ele escrevera no livro; feliz porque
aquilo era uma espécie de prova de que, apesar de tudo, a garrafa com a sua
mensagem continuava navegando e chegando a mãos que ele considerava
improváveis, quando a lançou no mar.
Contudo,
o que mais chamou a sua atenção ao ler a resenha do garoto não foi nada disso,
mas sim a menção a Bukowski. Naquele dia, pouco antes, enquanto caminhava como
um coiote perdido, tinha se lembrado de uma frase de Bukowski: “Eu tenho um
caso de amor com as ruas dessa cidade.” A frase, escrita em um de seus livros
ou incluída em alguma das raras entrevistas que deu durante toda a sua vida, referia-se
às ruas de Los Angeles, por onde Bukowiski circulou a maior parte da sua vida e
que serviram de inspiração para grande parte de sua obra.
Ele,
porém, não tinha uma relação apenas de amor com as ruas da cidade onde vivia –
e que era muito diferente da Los Angeles de Bukowski. Sua relação com aquelas
ruas e com aquela cidade era também de ódio, amor e ódio. Aliás, nos últimos
tempos, o ódio estava se sobrepujando de maneira cada vez mais incisiva e
aparentemente irreversível ao amor.
Bom,
mas isso não fazia diferença, já que nada faz diferença quando nada começa a
fazer sentido. Portanto, foda-se a cidade, fodam-se as suas ruas. Foda-se Los
Angeles. Ah, foda-se o Bukowski também. Que Deus – ou o Demônio, se ele
preferir – o tenha!
CAPÍTULO
V
Tinha
certeza de que mergulharia em cenários estranhos do passado. Mesmo assim,
dobrou a esquina. A “rua principal” continuava lá, com a loja de artigos de
pesca, outra de ferragens, outra de ervas e velas…
Parou
em frente à loja que vendia pássaros e rações e ficou observando três aves em
exposição numa gaiola redonda. Tivera uma daquelas em casa, anos atrás.
Chamava-a
de Maria, embora não soubesse se era um macho ou uma fêmea. Até hoje não
descobrira o nome daquela espécie de ave, mas talvez, um dia, resolvesse levar
outra Maria para casa.
Prosseguiu
a expedição de reconhecimento pela “rua principal”, constatando que alguns
bares haviam fechado. Até os bares estavam em decadência, pensou. Em todo o
caso, os que tinham resistido até que estavam cheios, para aquela hora da
manhã. Lembrou-se, então, que era domingo, e que muitas das pessoas que estavam
nos bares deviam estar emendando a noite do sábado. Em outros tempos, teria
ficado por ali, mas como os tempos eram outros, continuou caminhando.
Os
casarões antigos também resistiam, embora, se nada fosse feito com urgência,
eles simplesmente ruiriam, da noite para o dia, ou do dia para a noite.
O
velho mercado também continuava de pé. Na verdade, conforme lera nos jornais,
havia sido reformado há não muito tempo. No entanto, para ele, o grande prédio
tinha agora o aspecto de um enorme edifício-fantasma.
Mesmo
que algumas pessoas caminhassem por seu interior e que alguns boxes
continuassem a funcionar, vendendo frutas e verduras, não conseguia livrar-se
da sensação de estar percorrendo uma imensa casa mal-assombrada.
Enquanto
ouvia o barulho de seus próprios passos no saguão principal, teve uma breve
alucinação.
O
saguão, de repente, ficou cheio de gente indo e vindo, carrinhos transportando
mercadorias para dentro e para fora, aroma de café expresso da lanchonete que
funcionava logo na entrada misturando-se ao cheiro inebriante da grande
variedade de frutas expostas em dezenas de bancas coloridas.
Sentiu-se
um pouco tonto com aquela repentina e intensa profusão de odores, cores e
sensações. Voltou ao presente e caminhou em direção aos fundos do mercado.
Passou por vários espaços vazios e fechados por grades.
Chegou
à parte de trás do prédio, onde as peixarias e os pequenos armazéns já não
existiam mais. Grades enferrujadas também cercavam essas áreas agora desertas.
Avistou finalmente os pequenos barcos, as catraias flutuando na água escura e
suja do mar.
Avistou
também um grupo de moradores de rua, homens e mulheres, discutindo em voz alta
sobre alguma coisa a ver com uma garrafa que alguém havia quebrado ou roubado.
Prosseguiu
pela calçada que contornava externamente o mercado e viu três ou quatro bares
do outro lado da rua. Também estavam relativamente cheios para aquela hora da
manhã, mas era evidente que os “clientes” estavam bem mais altos do que os
freqüentadores dos bares da “rua principal”.
Recordou-se
que, no seu tempo, aquela dicotomia etílica e toxicológica entre os bares das
duas regiões já existia.
Lembrou-se
também do pequeno e estreito bar onde, no seu tempo, só ia para comer e nunca
para beber. E lá estava o bar, bem do outro lado da rua, que ele atravessou
devagar, sob o sol quente daquela manhã de domingo.
Embora
mais velhos, o casal de portugueses e os dois filhos ainda continuavam por ali,
fazendo salgadinhos e sanduíches e servindo uma freguesia que parecia, como
antes, sempre fiel. Felizmente, nem o homem nem a mulher, nem os dois rapazes o
reconheceram, ou talvez tivessem fingido que não se lembravam dele. Pediu um
pastel de camarão e uma Coca.
O
pastel continuava excelente.
Pensava
nisso e se perguntava por que aquela família permanecia ali, levando aquela
vida que lhe parecia tão dura, em meio a uma vizinhança aparentemente tão
hostil. Parecia óbvio que, àquela altura, já deviam ter acumulado dinheiro
suficiente para mudar para outro local, mais agradável e menos perigoso.
A
mãe e o pai já eram bem idosos e os filhos, dois homens maduros, provavelmente
já eram casados e tinham suas respectivas famílias. Mas lá continuavam eles,
servindo as pessoas, às vezes sorrindo entre si, às vezes fazendo comentários
sobre bêbados ou mendigos que passavam pela rua em frente. Era incrível como o
“sentido de família” parecia resistir e se sobrepor a tudo.
Saboreando
o último pedaço do pastel, ele teve noção de que estava presenciando uma cena
única, protagonizada por pessoas especiais, apesar da banalidade que tudo
aquilo pudesse aparentar. Sem saber direito o motivo, sentiu-se emocionado e
teve uma certa inveja daquelas pessoas, daquela família.selo 1
Saiu
do pequeno e estreito bar e foi caminhando de volta à “rua principal”. Mas, ao
chegar à esquina, deparou-se com vários homens, de diversas idades, sentados,
em fila, nas soleiras das quatro ou cinco primeiras casas da rua transversal.
Todos,
de um jeito ou de outro, tinham a expressão da derrota estampada em seus rostos
e, em certo sentido, pareciam ter ultrapassado o limite do simples desespero,
adentrando num distante e profundo pântano, onde, apesar da desolação e do
isolamento, talvez houvesse uma certa paz, advinda da definitiva, avassaladora
e irreversível resignação.
Que
diabo estariam aqueles homens fazendo ali, sentados em fila em soleiras de
portas, numa manhã de domingo de sol? O que estavam eles esperando acontecer?
Teve receio de aproximar-se e perguntar, mas percebeu, com extrema clareza,
que, por mero acaso ou capricho dos deuses, não estava também ali, naquele
momento, sentado nas soleiras daquelas portas, naquela fila, esperando sabe-se
lá o quê.
Voltou
a se sentir meio tonto e, quando deu por si, tinha se afastado da “rua
principal” e dobrado mais uma esquina. Lembrava-se também daquela rua
transversal. Era ali que, vez ou outra, almoçava num restaurante japonês que
ficava no meio da segunda quadra. E, como outros “fantasmas”, o restaurante,
embora fechado, talvez devido ao horário, continuava lá.
No
final da rua, junto a um canal de águas pluviais, deu de cara com uma feira de
trocas de objetos velhos e roupas usadas. Ficou algum tempo perambulando entre
os mais variados tipos de quinquilharias, que pareciam interessar a muita
gente, visto o grande número de pessoas que também perambulava pelo local e
examinava as ofertas estendidas ao longo das calçadas.
O
que alguém faria com um liqüidificador tão velho como aquele? E o secador de
cabelos, será que ainda funcionava? Quem compraria um fogão tão detonado assim?
E os discos de vinil, será que alguém teria para vender também uma vitrola
capaz de tocá-los?
Absorto
por esses pensamentos, não percebeu que estava bem na esquina da rua onde havia
morado, aos 10 ou 11 anos de idade. Dobrou mais uma esquina e sentiu novamente
aquela tontura, agora já bem familiar. Poucas vezes teve sensação tão forte de
como o tempo transformava radicalmente certos cenários do passado.
Não
era, logicamente, uma cena de guerra, mas apenas e tão somente porque nos
combates ali travados não haviam sido utilizadas armas de grande poder de
destruição. Mas que uma batalha cruel acontecera naquela rua ninguém poderia
negar. Como também era impossível não perceber que só os perdedores continuaram
a viver no local.
Não
restara uma única casa que não estivesse necessitando de reparos de emergência,
pois todas davam a impressão de estarem abandonadas há longo tempo, embora
fosse óbvio que eram habitadas. Parou finalmente na casa onde morara, que tinha
sido transformada numa habitação coletiva. Aliás, várias casas da rua haviam
tido o mesmo destino. Na última quadra, bem perto da esquina, três homens,
sentados ao redor de uma carroça, em frente a uma casa quase em ruínas,
passavam uma garrafa entre si e conversavam alto numa língua que ele, por mais
que tentasse, não conseguia compreender.
Aquilo
estava se tornando uma espécie de vício. Às vezes pela manhã, às vezes à tarde,
ele colocava um bloco de notas e uma caneta no bolso e saía caminhando pela
cidade. O objetivo era sempre o mesmo: encontrar um lugar onde se sentisse à
vontade, para sentar e anotar pontos de referência em torno dos quais,
posteriormente, começaria a contar uma história.
Ele,
contudo, raramente se sentava em algum lugar durante essas caminhadas, que só
terminavam quando se sentia totalmente esgotado e se arrastava de volta para
casa. Seu bloco de notas permanecia vazio, mas sua cabeça havia se transformado
num grande e caótico arquivo, alimentado pelas cenas que, durante suas
caminhadas, iam sendo registradas por sua mente, se misturavam com suas
memórias e davam forma a um filme que jamais teria fim e nunca seria assistido
por alguém.
No
dia seguinte, no entanto, ele colocava o bloco de notas e a caneta no bolso e
saía novamente pela cidade.
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