Thursday, December 15, 2016

CAIXOTE (uma crônica de Marcelo Rayel Correggiari)



O gostoso da internet é navegar sem se preocupar. Como na vida, navega-se e tromba-se com cada coisa que é de se perguntar como chegamos àquilo.

Nesses ‘mares nunca dantes navegados’, dei de cara com um nome inusitado: Pátio Pinda. ‘Shopping Center’ é coisa da minha infância, ‘trem’ bem brega, que já não se usa mais. O lance agora é o ‘Mall’, ou o tal de ‘Pátio’. Chegaria o grande dia em que a palavra ‘pátio’ estaria ombro-a-ombro com Pinda, Pira, Varre-e-Sai, ou substantivos bem pouco nobres como ‘cachaça’, ‘esparrela’ ou ‘vadiagem’.

Certo! Puxo o link de imagens do tal Pátio Pinda: mais parece um aeroporto! Olhei a foto de relance e soltei um: "olha! que aeroporto legal!". #sqn. Era um baita Shopping Center, desses de fazer muita capital de estado enrubescer. Juro: no estacionamento do bichão dá para pousar esses aviões da ponte-aérea.

Não é à toa de que não temos mais ‘paladar arquitetônico’ para as coisas: de longe (ou até de perto!), exceto a presença de aeronaves, “cara d'um, ...”.

Ainda me estarreço como o ‘çer umano’ pode ser surpreendentemente surpreendente. Que somos ‘bichinhos de altas manobras’ (ou baixas, não importa!), isso até já sabemos. Contudo, é de se cair o queixo de procurá-lo por aí, n’algum canto da cidade, como é que enquadramos nossas próprias vidas no ‘diminuto’.

‘Shopping Center’, ‘Pátio’, sei lá, é até bacanudo, mas meu lado ‘homem do terciário’ (ou ‘do quaternário’!) pouco permite tal antro de consumo e diversão ser o melhor do mundos. É bacana, é legal, até a página 7. Só não dá para colocar tudo ali dentro e transformar cidades no universo mais asséptico possível.

Imaginemos uma Mercearia, aquele tremendo ‘secos-e-molhados’, uma daquelas de envergonhar cárie com canal aberto, ponto de encontro de todas as camadas sociais, dentro de um ‘shopping center’. Não consigo sequer pensar na cena! Seria o mesmo que chegar num lupanar e pedir certificado de origem da mercadoria... algo meio impensável, convenhamos.

Há cidades sem alternativas, isso é certo. De repente, tudo vai ali, no estacionamento do ‘shopping center’ porque talvez seja o único lugar amplo para se organizar qualquer coisa, principalmente em ambiente urbano acanhado: de feiras, ‘feirões’, shows, festas, até prova de pedestrianismo. O bom e velho ‘cada um se vira como pode’.

Nosso único defeito, nós, dessa nostálgica Mercearia, é crer que ‘entender’ não é ‘referendar’. Vai uma bela distância entre um e outro, aliás. Entendemos, mas não concordamos e, muito menos, queremos um troço desse sentado à mesma mesa.

“Shopping Center” é um lugar onde eu vou, faço compras, assisto a um filme, até como a comida de plástico que fazem ali. Só não faço isso o tempo todo. Mesmo porque o mais gostoso de se fazer na vida a gente faz na rua.

O tal do ‘Pátio’ é um nome transadíssimo que emula bem a vida de 90% das pessoas que habitam nosso planetinha nos dias de hoje: um tesão irrefreável por cenários inorgânicos. Porque, em cenários inorgânicos, o(a) outro(a) é um(a) boneco(a), uma ‘barbie’, um ‘ken’, um ‘falcon’... sei lá! Um(a) boneco(a) que faz o que a gente quer num cenário que só existe em nossa pobre cabecinha. Sabe?! Aquele cenário dos sonhos?! Onde controlamos tudo, inclusive como e quando o(a) outro(a) deseja, como ele(a) deve desejar?!

Puta que pariu, né?! Nem preciso dizer que é uma merda...!

O(A) outro(a) não pode nos surpreender num ‘shopping center’: somente três entradas, um único estacionamento, todo mundo dentro de um caixote sem a menor personalidade, asséptico (como dito há pouco!), onde a autenticidade e o protagonismo do desejo vão para o ‘the house of prick’!

Reparando bem, uma analogia da vida de boa parte das pessoas, hoje! “Você tem de fazer como eu quero que você faça!”... e foda-se o resto! Se o outro tiver um desejo contrário, ou uma diarreia... dane-se! ‘Tem de ser do meu jeito, dentro desse cenário bem bonito produzido pela minha cabeça podre de tão doente que está...’.

Isso me faz lembrar de um amigo de colégio que recentemente pediu o divórcio. A mulher dele meteu um louco tão generoso que a vida do amigo precisava de uma via-láctea inteirinha para ficar só péssima. A pancadaria (no sentido metafórico da coisa) ficou tão ruim, mas tão horrorosamente perturbadora que o próprio satanás lhe ofereceu uma vaguinha lá no inferno por ser bem mais sossegado que o desquite no litigioso.

É meu amigo, mas é um acéfalo... imaginar que a futura ex-mulher fosse assinar os papéis com cervejinha na mão e um sorriso no rosto só na cabeça de quem enquadra os outros num cenário onde não há, em hipótese alguma, movimentos de alma.

Lugar mais apropriado para a analogia desse tipo de procedimento doentio que não seja um ‘shopping mall’, não existe.

Todos os cenários são orgânicos. Somente os dementes os enxergam como inorgânicos. E, pior, aguardam ansiosamente que todos os demais ajam do jeito que eles querem, jamais do jeito como são.

Interações e relacionamentos controlados pelo ‘o mundo segundo eu mesmo’... hum...! Esquisito, isso. Nem tudo serão flores...

... aliás, flores são inencontráveis em estacionamentos de ‘shopping centers’. Sintomático?! Não é ‘pra’ menos...




Marcelo Rayel Correggiari
nasceu em Santos há 48 anos
e vive na mítica Vila Belmiro.
Formado em Letras,
leciona Inglês para sobreviver,
mas vive mesmo é de escrever e traduzir.
É avesso a hermetismos
e herméticos em geral,
e escreve semanalmente em
LEVA UM CASAQUINHO




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