Certo, o Natal chegou de novo antes de Jesus, todas as lojas estão dizendo, mas o fato é que Jesus já veio pra mim. Veio num filhote de passarinho, um tico-tico caído do ninho com os distúrbios provocados pelo vento noroeste, que é um vento morno de enlouquecer os sentidos, que altera a paisagem, crispa a água do mar, confunde as direções e faz passarinho cair do ninho achando que já está pronto pra voar. Quando chega ao chão, especialmente quando esse chão é o asfalto, cadê mamãe?
Pois o tico-tiquinho estava à base de uma roda de motocicleta, veio o condutor pra montar e sua filha o alertou do passarinho. Ele voou, um voo de mosca, o motoqueiro foi atrás e o pegou na calçada e veio certo em minha direção, que caminhava distraído com a cadela esperando o norte chegar. Chegou a mim, estendeu os braços dizendo “tome, cuide dele, você deve morar por aqui, eu não posso, vou pra outra cidade”.
É instintivo aceitar o que nos oferecem, pois a dádiva preserva algo de divino, ainda mais neste mundo que tudo vem com etiqueta de preço. Abri as mãos no peito, quase sem espaço, pois a incisividade do cara era tal que o pássaro entre suas mãos estava praticamente em meu corpo. Peguei, aceitando para logo constatar que se uma dádiva não vem com etiqueta, acaba por ter seus preços ocultos. Talvez por isso todo mundo prefira o conforto do mercado, do presente embalado, com preço certo, sem muitas reciprocidades mais.
O sujeito se foi, nunca mais vou vê-lo, nada terei que retribuir. O pássaro, porém, estava ali e o que tentei imaginar como dádiva transformou-se num problema: o que fazer com um filhote? Dei sombra e água fresca, botei pra descansar, dei mamão no bico, vi sua língua branca e comprida se manifestar lambendo a doçura da fruta. Foi um encanto descobrir que sirvo para alguma coisa. Mas logo o bicho me olhou de lado tentando atinar que raio de tico-ticão era eu, se encrespou, se encorungou e me vi na situação de que não sirvo pra nada mesmo, pois ele está querendo ir embora e estou num dilema danado se o solto entre as árvores ou o deixo crescer mais uns dias.
Lá fora hoje está uma chuva danada, um frio, como vou soltar o bicho? Mas aí escuto: a passarinhada não está nem aí, está cantando na chuva, bando de Fred Astaires reencarnados dos diabos. Tiro o olho da copa das árvores e vejo que o tico-tiquinho dá umas avoadas curtas na gaiola que improvisei, deve estar querendo ir. Um bicho em casa é sempre uma alegria, mas ele está de passagem, não vejo a hora de soltar esse jesuscristinho de sua cruz passageira, preso mal nasceu. Decido: vou esperar o sol sair, o dia ficar mais alegre, seremos dois encorungados bicudos até lá. Aí uma agonia: o que ficará dessa sua experiência, preso após um inocente voo? Nunca saberei, é certo, tanto quanto o fato de que o tico-tiquinho, mal virei as costas deixando-o solto na sacada, sumiu, voou, não vi, se foi sem dizer adeus.
Ademir Demarchi é santista de Maringá, no Paraná,
onde nasceu em 7 de Abril de 1960.
Além de poeta, cronista e tradutor,
é editor da prestigiada revista BABEL.
Possui diversos livros publicados.
Seus poemas estão reunidos em "Pirão de Sereia"
e suas crônicas em "Siri Na Lata",
ambos publicados pela Realejo Edições.
Suas crônicas, que saem semanalmente
no Diário do Norte do Paraná, de Maringá,
passam a ser publicadas todas as quintas
aqui em Leva Um Casaquinho
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