por Márcio Calafiori
Faz cinquenta anos que Truman Capote pôs lenha na fogueira. A literatura americana precisava urgente de algo que combinasse com direitos civis, protestos, Guerra do Vietnã, contracultura, hippies, maconha, muita maconha, ácido, feminismo, pílula, minissaia, Beatles e Rolling Stones. Foi então que em quatro semanas consecutivas — a partir de 25 de setembro de 1965 — Capote apareceu na revista The New Yorker com o elétrico e desconcertante A Sangue-Frio. Não se tratava de mais um artigo diferente produzido pela revista. Ao misturar a técnica da reportagem com a arte do romance, Capote não deixou por menos: inaugurou o romance de não-ficção.
Só no subtítulo de A Sangue-Frio é que fica evidente o aspecto de reportagem da obra — “O relato fiel de um assassinato múltiplo e suas complicações”. O livro trata do homicídio brutal de quatro pessoas de uma mesma família, os Clutter, ocorrido na madrugada de 15 de novembro de 1959, em Holcomb, então uma cidadezinha de duzentos e setenta habitantes, no Kansas. Gerald Clarke, biógrafo de Capote, diz que o escritor leu a notícia sobre o crime na edição de 16 de novembro do jornal The New York Times: “Fazendeiro rico e sua família são barbaramente assassinados”. Capote teve então um frenesi — acabava de deparar com o tema que, finalmente, lhe permitiria testar um novo estilo de escrita, o que perseguia havia anos — a mistura da reportagem com a técnica do romance.
Quando o texto foi publicado em livro, em janeiro de 1966, Capote foi bombardeado por parte da crítica americana, segundo a qual o que ele tivera a audácia de anunciar como novo não era exatamente novidade. Outra parte da crítica questionava: Como é que um romance, que lida especificamente com a ficção, poderia ser classificado de não-ficção? Mas é justamente aí que está a inovação e a surpresa de Capote: ele escreveu uma reportagem que pode ser lida perfeitamente como um romance — ou vice-versa.
Antes de Capote, alguns escritores já tinham associado a reportagem à técnica literária, mas foi ele quem de fato inovou. Aliás, a publicação agora pela Companhia Das Letras de Filme, de Lillian Ross, coloca os pontos nos “ii”. Há quem defenda que foi Ross, na verdade, quem inaugurou na mesma The New Yorker o formato que Capote anunciou como novo. Mas basta ler o trabalho de Lillian Ross e compará-lo com o de Capote. São diferentes. Filme é exatamente o que é: uma reportagem minuciosa, bem escrita e envolvente. Quarenta anos depois, A Sangue-Frio é... um romance-reportagem! E Capote acrescentaria: “Imaculadamente factual”.
Ao unir a literatura com o jornalismo, a obra de Capote serviu de modelo para tudo o que de mais importante se escreveu em jornalismo nos Estados Unidos, a partir de 1965. Todos os jornalistas-escritores americanos foram em busca da sua grande história, do seu grande tema. Em 1966, Hunter Thompson publica Hell’s Angels; em 1968, Norman Mailer lança Os Exércitos da Noite e Tom Wolfe, O Teste do Ácido do Refresco Elétrico; em 1969, Gay Talese aparece com O Reino e o Poder — Uma história do New York Times e em 1971 com Honrados Mafiosos (ou Honra Teu Pai) — a história de uma família da máfia italiana e o funcionamento de uma das mais importantes organizações criminosas do mundo. A crítica Kathryn VanSpanckeren diz que “os anos 60 [nos Estados Unidos] foram marcados por menor distinção entre ficção e fato, romance e reportagem, tendência mantida até hoje”. Ou seja: a linguagem de Capote em A Sangue-Frio influenciou não apenas um novo modelo de reportagem — dando autoridade e visibilidade ao Novo Jornalismo — mas a literatura também. Tom Wolfe vai ainda mais longe. Para ele, o Novo Jornalismo substitui, inclusive, a importância que a ficção americana não foi capaz de alcançar nos anos 1960.
No caso de Norman Mailer, a influência de Capote foi vital, pois aos vinte e quatro anos de idade Mailer ficara mundialmente famoso com o romance Os Nus e os Mortos (1948), mas depois disso a sua carreira de escritor estava apenas morna. Referindo-se às criticas que recebera por A Sangue-Frio, Capote escreveu, reclamando de Mailer e da crítica em geral: “(...) Vários críticos se queixaram de que romance verídico era uma expressão ambígua, uma mistificação, e que não havia realmente nada de realmente original ou novo no que eu tinha feito. Mas houve quem pensasse de maneira diversa, outros escritores que compreenderam o alcance de minha experiência e se apressaram a pôr a receita em prática — nenhum com mais rapidez do que Norman Mailer, que ganhou muito dinheiro e recebeu uma porção de prêmios escrevendo romances verídicos (...), embora sempre fizesse questão de jamais classificá-los de ‘romances verídicos’ (...)”.
Mailer ganhou dois Pulitzer — em 1969, com Os Exércitos da Noite (também premiado com o National Book Award), e, em 1980, com A Canção do Carrasco. Capote nunca foi premiado por A Sangue-Frio. A respeito disso, ele deu o seguinte depoimento para o biógrafo Gerald Clarke: “Eu crio algo realmente inovador, e quem ganha os prêmios? Norman Mailer, que teve a coragem de dizer que era burrice o que eu estava fazendo em A Sangue-Frio; depois ele se senta e faz um plágio perfeito. Não existe um plágio maior em todo o século 20. Ele usou tudo o que fiz, todo o trabalho que tive, a técnica experimental, e plagiou. Mas só uma coisa me magoa: nem o sr. Mailer nem tantos outros que me copiaram, como o sr. [Bob] Woodward e o sr. [Carl] Bernstein, nunca reconheceram que me devem alguma coisa, que fui eu quem inventou essa fórmula. Eles ganharam prêmios e eu não ganhei nada. E eu sei que merecia. A decisão de não me premiar foi totalmente injusta. Então, a essa altura eu posso dizer: ‘Fodam-se todos vocês!’ (...)”.
Acompanhado de Harper Lee — uma amiga de infância, escritora, que escrevera O Sol É Para Todos —, Truman Capote viajou de trem para Holcomb em dezembro de 1959, quase um mês depois do assassinato dos quatro membros da família Clutter. Homossexual assumido, afetado, baixinho (media 1,58), com uma voz fininha de garoto, ele se sentiu duramente desconfortável naquele ambiente de faroeste. Virou a atração principal da cidade. Os moradores imitavam os seus trejeitos e a sua voz esquisita. É verdade, porém, que dias depois a população de Holcomb se tomou de amores pelo escritor. Ele sabia conversar, adorava contar fofocas de gente famosa e era charmoso.
Até a prisão dos dois assassinos, Capote pretendia apenas testar uma nova linguagem num artigo para a revista The New Yorker: a reação paranoica da cidadezinha ao crime brutal. Ele só compreendeu que o que tinha em mãos era uma história longa e terrível quando Perry Smith, um dos assassinos, foi interrogado pelo juiz. Bom observador, reparou que, sentado, os pés dele não tocavam o chão. Parecia um garoto de doze anos. Essa imagem absorveu Capote. O Perry Smith de A Sangue-Frio é considerado pelo insuspeito Norman Mailer como uma das grandes personagens da literatura americana. O assassino teve graves problemas emocionais. Criança ainda foi entregue a um reformatório, onde era insultado pelos colegas e apanhava das freiras por mijar na cama. Perry tinha sensibilidade artística. Queria ser músico, pintor ou poeta. Lia e colecionava palavras para enriquecer o vocabulário. Este é um dos poemas de sua autoria que ele escreveu na prisão e mandou em carta para Capote:
“Para além das colinas distantes,
Os sons plangentes dos curiangos,
Reverberam em rochas e regatos,
Esse gemido tão plangente!
É o tordo tantas vezes ouvido,
Pretendendo fazer de si um absurdo,
Ou apenas um pássaro melancólico,
Na verdade, triste como eu.”
Perry Smith também era compositor. (Na refilmagem de A Sangue-Frio, de 1996, o diretor Jonathan Kaplan usou canções compostas por ele). Em muitos aspectos, Capote se identificava com o assassino, pois até os dez anos de idade também fora criado por “estranhos” — primas e primos velhos — por causa da separação dos pais. Aos amigos o escritor disse várias vezes que teve a sorte de não se tornar um marginal como Perry.
Responsável pelo caso e pela prisão dos assassinos, o investigador Alvin Dewey tinha uma espécie de respeito por Perry. Na cena do enforcamento dos criminosos, Capote narra: “Dewey fechou os olhos. Manteve-os fechados até que ouviu o baque surdo anunciando um pescoço quebrado por corda. Como a maior parte dos agentes da lei dos Estados Unidos, Dewey tem a certeza de que a pena de morte é um meio de intimidação ao crime violento. Sentia que se a punição se justificava, era o caso presente. A execução anterior [de Dick Hickock] não o perturbara, pois nunca dera muita importância a Hickock, que lhe parecia apenas ‘um ladrãozinho ordinário’ que saíra de sua categoria, vazio, não valia nada. Mas Smith, embora fosse o verdadeiro assassino, despertava outra espécie de reação, pois Perry possuía a alma do animal ferido, da criatura exilada que o detetive não podia menosprezar. Lembrou-se do primeiro encontro com Perry, na sala de interrogatórios em Las Vegas: o menino-homem, quase anão, sentado na cadeira de metal, os pés em botas mal tocando o solo. E foi o que viu, quando abriu de novo os olhos: os mesmos pés infantis, tortos, balançando [na forca]”.
O romance-reportagem de Capote entra para a história não só como um dos principais marcos da literatura e do jornalismo do século 20, mas também como um dos relacionamentos mais tensos, neuróticos e complexos de que se tem notícia entre um autor e sua obra. Para reconstruir o assassinato da família Clutter, o escritor se aproximou dos assassinos e se tornou seu confidente. Além dos advogados, Capote foi o único que teve permissão para visitá-los no corredor da morte.
Tudo o que ele conversou com Perry e Dick está no livro. Muitos leitores até hoje ficam surpresos e não entendem como é que Capote “sabia de tudo aquilo”. Perry e Dick, no entanto, não tinham ideia do que ele estava escrevendo. Em carta ao escritor, Perry escreveu: “Disseram que o livro só vai ser vendido depois da nossa execução. E que o título é A Sangue-Frio. Quem está mentindo? Parece que alguém está. Francamente, A Sangue-Frio é de chocar qualquer consciência”.
Embora tenha se tornado íntimo de Perry e Dick, pessoalmente Capote queria que eles fossem executados, para que A Sangue-Frio tivesse o desfecho digno de um grande romance. Cada adiamento da pena era uma tortura para o escritor. De 1959 a 1965, ele não conseguiu se dedicar a quase nada que não fosse o livro. As três primeiras partes da história foram concluídas no início de fevereiro de 1963. Daí em diante, Capote ficou esperando o enforcamento dos assassinos para escrever a última parte, o que só ocorreu em 14 abril de 1965. A execução de Perry e Dick teve para ele o sentido de missão cumprida.
A repercussão da história na New Yorker e depois a publicação do livro, em janeiro de 1966, foi imediata e retumbante. De acordo com Gerald Clarke, Capote ganhou na época pelo menos dois milhões de dólares com a obra e ficou rico. Ele foi assunto de todos os jornais, revistas e tevês importantes e manteve polêmicas com críticos e colegas. Mas depois de A Sangue-Frio o escritor nunca mais foi o mesmo. Como artista, entrou em decadência irreversível, até morrer em 25 agosto de 1984, um mês e pouco antes de completar sessenta anos, vítima da depressão, do álcool e das drogas pesadas.
(publicado originalmente na Revista Fórum, nº 32, novembro de 2005, e atualizado para republicação com o aval do autor para LEVA UM CASAQUINHO)
A SANGUE FRIO
Truman Capote
diversas edições desde 1966
publicado por diversas editoras
com diversas traduções
(recomendamos a primeira, da Nova Fronteira, assinada por Ivan Lessa)
disponível na Estante Virtual
com preços a partir de 6 reais
No comments:
Post a Comment