Monday, December 12, 2016

ESCRACHANDO O DEMÔNIO COM UM CHUTE NOS BAGOS #6 (um folhetim de J R Fidalgo)

EM CANA OU NO HOSPÍCIO
(1ª temporada, episódio 06)


Já repararam como somos absurdos?

Volta e meia, por questão de segundos, percebemos isso.

Como se, de repente, nossa origem alienígena dos mandasse o recado de que, por mais que tentemos, não conseguiremos nos adaptar totalmente ao mundo em que fomos jogados.

E, em certos momentos, essa nossa incapacidade fica mais clara, a ponto de pessoas próximas ficarem se perguntando se não há algo de errado conosco, alguma disfunção ainda não catalogada.

Enfim, como diziam os ancestrais, “damos bandeira”, e agradecemos por não haver nenhum tira ou psiquiatra por perto para nos colocar em cana ou em um hospício.

Mas vamos por enquanto deixar essas teorias interplanetárias de lado e pensar um pouco mais concretamente sobre o absurdo que às vezes sacamos que somos.

Claro, tem muita gente que nunca teve nem terá essa sensação.

Contudo, estamos conversando aqui sobre as pessoas que, de vez em quando, sentem que, se a vida é absurda, elas são mais absurdas ainda tentando a todo custo dar algum sentido a suas vidas absurdas.

Vejam bem, não estou falando daquele tipo de absurdo de que a gente nasce, cresce, envelhece e morre. Refiro-me ao absurdo maior ainda que é o modo como lidamos com esse ciclo natural de acontecimentos, comuns a toda a humanidade.

Por mais que nos esforcemos, sempre fazemos alguma coisa estúpida, absurda em relação a determinado assunto com o qual estamos lidando. O problema é que só percebemos isso depois que a cagada foi feita e não há como voltar atrás.

Embora não seja médico, psiquiatra, guru, padre, pastor nem nenhum tipo dessas coisas, é comum as pessoas me perguntarem se esse troço tem cura.

Sempre respondo que não faço ideia, mas que me esforço para preservar – e como mais frequência ainda, resgatar – a sensação de esperança de que isso é possível, mesmo que dure apenas pequenos momentos que, quem sabe, possam ir se ampliando, até nos permitir encontrar a brecha, a verdadeira brecha.

A esta altura, vocês devem – ou sinceramente deveriam – estar se perguntando que merda estão fazendo aqui, com as suas bundas esquentando suas cadeiras e vice-versa, ouvindo um sujeito que confessa que sabe,tanto como escapar pela brecha quanto vocês. Ou seja, praticamente porra nenhuma.´

Bem, essa resposta só vocês poderão dar.

De minha parte, diria que os três patetas já estão mortos. Mas eu continuo vivo.



Nunca entendi direito a reação automática das pessoas aplaudirem no exato momento em que alguém acaba de falar. Acho que é impossível que elas consigam digerir e menos ainda refletir sobre tanta coisa que foi dita. Em todo o caso, foi isso que aconteceu quando agradeci a atenção e me despedi.

Quando escapava pelos bastidores, fiquei esperando que alguém gritasse de novo “babaca”, mas desta vez ouvi: “Não deviam deixar esse cara solto.”

Talvez o autor da frase tivesse razão, mas eu estava ocupado demais começando a ficar invisível e sumindo nas ruas.



Atendi o celular e ouvi: “Os caras querem que você faça seu preço?”

- O quê?

- Quanto você quer pra fazer a continuação da porra do livro?

- Agora estou mergulhado no “Escrachando o Demônio”. Arruma outro cara pra fazer a continuação. Tá cheio de sujeito aí que consegue ser tão ou mais idiota do que eu.

- Eles querem você. Disseram que você sabe traduzir e simplificar a “linguagem do Espírito Santo”, coisas do tipo. Pior, começaram a usar o “Mar Vermelho” nos cultos. Quase não citam a Bíblia. E o tal pastor prodígio que eles queriam promover teve um AVC punk e agora tá quietinho e mudinho numa cadeira de rodas.

- Por que os caras não fazem aqueles milagres lá deles e resolvem isso?

- Eles dizem que não dá pra fazer milagre porque o garoto não quer. Na visão deles, foi o próprio garoto que quis ficar fodido assim.

- O quê?

- É, diz que assim ele ouve melhor a voz do Espírito Santo.

- Mas, se ele tá mudo, como é que os outros pastores sabem que ele virou abóbora por vontade própria?

- Ele se comunica mentalmente com os outros pastores. Foi ele que disse que só você podia fazer a continuação do livro dele. Mas não foi por isso que eu te liguei.

- Ligou pra quê então?

- Aquele teu negócio do “Escrachando” tá crescendo, já percebeu? Uma porção de acessos por dia.

- Eu desisti desse troço há uns dois meses. Não linquei mais o blogue.

- Por que você desistiu?

- Perdi o tesão. Agora tenho passado a maior parte dos dias atirado bolinha pra dois de meus cachorros viciados nesse tipo de coisa. Não sobra muito tempo pra mais nada.

- Você acha que pode retomar o blogue?

- Pra quê? Meus cachorros ficariam confusos.

- Reserva um período específico pra isso, quer dizer, pra atirar bolinha. Assim eles acabam se acostumando que é só naquela hora que você vai atirar bolinha e nos resto do tempo você escreve no blogue.

- Sabe, a verdade é que eu tô achando mais divertido atirar bolinha do que escrever no blogue.

- Tudo bem, mas a gente podia tentar um lance. A gente faz um acordo lá com teus amiguinhos hackers, eles dão uma ressuscitada no blogue e depois a gente junta os textos e edita um livro. Monta outro esqueminha pra esquentar o livro on line e por aí vai. Se você fizer mais uns, sei lá, 20, 30 posts, acho que já dá pra fechar um livro. O que você acha?

- Não sei, preciso pensar um pouco. Conversar com a minha mulher, meus cachorros, pesar os prós e os contras, essas coisas.

- Pensa aí, mas esse troço do “Fodendo o Demônio”, acho que pode dar o maior pé, se a gente fizer a coisa direitinho.

- Não é “Fodendo”. É “Escrachando”.

- Que seja. Pensa aí.

- E a porra da continuação do livro dos pastores?

- Ah, fodam-se os pastores. Eles que resolvam o problema deles lá. Vamos partir pra outra, livro, DVD, palestras e assim por diante. Quem sabe até um programa na TV a cabo.

- Por que essa mudança súbita de ideia? Cansou de ganhar dinheiro com os pastores?

- Já te disse, fodam-se os pastores.

Foram suas últimas palavras, após ficar um longo período em silencio e desligar o telefone.

Era totalmente inútil tentar imaginar por que meu amigo havia mudado tão subitamente de ideia quanto a fazer uma continuação do “Além do Mar Vermelho”.

Quem o conhecia bem sabia que sua cabeça funcionava como aquelas birutas de aeroporto. Além disso, era vítima de crises de tédio ancestrais sempre que ficava alguns meses tratando de um mesmo assunto.

Quando esse tédio atávico batia, ele, primeiro, começava a se chapar pesado com a droga de sua preferência no momento. Daí, era obrigado a entrar pra uma reabilitação, período em que ficava maquinando o que poderia fazer quando estivesse fora da clínica.

Talvez tudo isso estivesse interligado, mas pra mim não tinha importância agora.

Minha cabeça estava fixada sobre aquilo que falou a respeito de um livro, DVD, palestras e assim por diante. Inclusive, o que mais me preocupava era o “assim por diante”, porque podia significar coisas mais loucas ainda do que tudo o que ele falou, incluindo o programa de TV a cabo.

Para quem estava interessado em se tornar invisível, aquela conversa toda soava como um grande pesadelo.

Mas, ao mesmo tempo, a ideia de soltar um livro chamado “Escrachando o Demônio com um Chute nos Bagos”, independente do que estivesse escrito nele, reascendeu em mim algo que eu sinceramente pensava estar definitivamente morto e enterrado:

A irresistível vontade de fazer algo completamente irresponsável sem nenhum objetivo específico, como quando somos moleques e atiramos uma pedra numa vitrine apenas para ouvir o barulho que o vidro faz quando se estilhaça.

Passei as semanas seguintes alternando o lançamento de bolinhas pra meus cachorros com períodos sentado ao computador, escrevendo o que me vinha à cabeça sobre as diversas formas imagináveis e possíveis de acertar os bagos do Demônio.

Quando o fluxo travava, eu ia dar uma volta da chuva que caía fora da cabana.

Nunca cheguei a reparar que sempre que eu travava, chovia e eu saía pra caminhar. Voltava encharcado, sentava ao teclado e o fluxo voltava.

Seja qual fosse o motivo, funcionava, pra azar dos bagos do Demônio.

Entrei num ritmo quase frenético e às vezes chegava a postar dois ou três textos num só dia no blogue, principalmente em dia de chuva.

Aliás, nos dias de chuva também não atirava bolinhas pros cachorros.

É bem provável que isso tudo estivesse relacionado, mas preferi não pensar sobre o assunto e usar o que me restava de energia para continuar fodendo os bagos do Demônio.

Um dia, meu amigo mandou um e-mail com uma única palavra: PARA, assim mesmo, em letras maiúsculas.

Ele devia ter dito isso há duas ou três semanas. Agora não dava pra parar sem concluir aquilo tudo. Não fazia a mínima ideia do que exatamente precisava ser concluído. Mas tinha certeza de que isso era extremamente necessário.

A gente não chuta os bagos do Demônio e simplesmente vira as costas.



JR Fidalgo,
um jornalista que tem preguiça de perguntar,
um escritor que não tem saco pra escrever
e um compositor que não sabe tocar.

(mesmo assim escreveu dois romances
e uma quantidade considerável de canções
ao longo dos últimos 40 anos - nota do editor)


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