CHUTE PRIMEIRO, ACERTE NOS BAGOS, NÃO HESITE, CHUTE JÁ!
(1ª temporada, episódio 07)
- E aí, quando vai sair?
Demorei para reconhecer a voz da mulher do outro lado da linha. Percebi então que era a repórter daquele site alternativo que tinha me ligado muitos meses atrás e me deixando meio assustado com o fato de ela saber que eu havia sido o ghost writer da porra do “Muito Além do Mar Vermelho.”
- Se você é tão bem informada já devia saber que eu não vou escrever a continuação daquele troço.
- Que troço e que continuação?
- A continuação do “Muito Além do Mar Vermelho”.
- Ah, você ia escrever uma continuação, é?
- Não ia nem vou. Não quero mais saber dessas paranoias bíblicas.
- Nem eu. Na verdade, eu estava querendo saber quando você vai lançar o teu livro?
- Que livro?
- O “Chutando o Demônio”
- É “Escrachando o Demônio com um Chute nos Bagos”.
- Que seja, mas quando vai sair?
- Quem disse que vai sair alguma coisa?
- Aquele teu amigo meio maluco. A gente tomou um porre num bar e ele me contou tudo. Inclusive sugeriu que a gente, eu e ele, montasse um esquema de divulgação multimidiático.
- Filho da puta!
- Quem?
- Esse meu amigo. Era um assunto particular, muito particular.
- Bom, agora eu já sei. Quando você pretende lançar?
- Preciso concluir a coisa.
- Concluir o quê?
- Aquilo tudo que eu disse. Precisa de uma conclusão, mas não sei como fazer isso.
- Que tal você terminar com a frase: “E ficamos por aqui, por enquanto?”
- Não é má ideia.
- Então faz isso. Depois te ligo pra gente combinar o resto.
- Que resto?
- Teu amigo te explica. Tchau!
Achei a ideia de “e ficamos por aqui, por enquanto” muito boa.
Para algumas pessoas, aquilo, na cabeça delas, ia realmente concluir tudo. Para outras, não ia concluir porra nenhuma.
De qualquer maneira, achei um final perfeito para “Escrachando o Demônio com um Chute nos Bagos”.
Surgiu de novo aquela sensação de atirar uma pedra na vitrine apenas para ouvir o vidro se estilhaçando.
Postei a frase no blogue, razoavelmente afastada do resto do texto.
E, mais embaixo, coloquei: “Até a próxima, ou não.”
Mandei um e-mail pro meu amigo dizendo: “PAREI. MANDA VER.”
Mandar ver o que eu não fazia a mínima ideia.
Mas estava feito.
Não queria mais ter que pensar nos bagos do Demônio por um bom tempo. E isso em deu uma incrível sensação de alegria e liberdade.
Fui dar uma volta fora da cabana e, adivinhem, estava chovendo.
Tirei a roupa e fiquei debaixo da chuva até sentir frio.
Tudo o que eu queria agora era um banho quente.
No dia seguinte, bem cedo, tentei acessar o blogue, mas só encontrei uma página em cinza bem claro.
Embaixo da tela, no lado esquerdo, um discreto texto em itálico e letras minúsculas: “aguardem o livro ‘Escrachando o Demônio com um Chute nos Bagos’...vendas em breve, somente pela internet.”
Retomei a prática de jogar bolinhas pra meus cachorros. No tempo livre, comecei a fazer desenhos de verdade nas paredes da minha caverna.
Tempos depois, recebi um pacote pelos Correios. Uma caixa parda, mais ou menos retangular.
Assinei o papel que o carteiro me deu. E entrei.
“Escrachando o Demônio com um Chute nos Bagos” finalmente virara um livro.
No lado esquerdo da capa, de cor quase tão parda quando a do pacote dos Correios, uma inscrição em letras azuis minúsculas grifadas: “não se defenda, chute primeiro, acerte nos bagos, não hesite, chute já!”
Dentro do pacote, um bilhete de meu amigo: “Marketing pesado. Chutando bagos em todas as direções. Dentro de alguns meses, explode. Você vai viajar pra caralho. Agenda de workshops sendo preparada. Tem gente que já tá prevendo que vai virar roteiro. Quem diria?”
Amassei o papel, guardei o cheque no bolso do roupão e voltei a atirar bolinhas pros cachorros.
Que porra tinha acontecido com aquela merda que eu tinha escrito?
Não tive coragem de abrir o livro. Já estava escuro e nem eu e nem os cachorros conseguíamos enxergar as bolinhas direito.
Voltei pra casa e joguei o livro sobre a mesa da cozinha com o cheque sobre ele.
Peguei o celular e mandei uma mensagem pra meu amigo: “Se você der o endereço da minha casa pra mais alguém, corto sua garganta!”
um jornalista que tem preguiça de perguntar,
um escritor que não tem saco pra escrever
e um compositor que não sabe tocar.
(mesmo assim escreveu dois romances
e uma quantidade considerável de canções
ao longo dos últimos 40 anos - nota do editor)
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