MUITO ALÉM DO MAR VERMELHO!
(1ª temporada, episódio 05)
Passaram-se vários meses sem que eu tivesse qualquer pensamento a respeito de espíritos, demônios, revelações esotéricas ou surtos de escrita automática debruçado sobre o teclado do computador.
Um dia recebi pelo correio um pacote com um exemplar de um livro chamado “Muito Além do Mar Vermelho”. Junto, vinha um bilhete do meu amigo, contando que a coisa estava vendendo que nem água, e não só entre os membros da igreja, mas também entre muita gente que nem religiosa era.
Claro que o fato de um vídeo promocional ter viralizado na internet ajudou bastante.
O vídeo trazia depoimentos de dois jogadores de futebol famosos, uma dupla sertaneja, um filósofo ateu e de uma cantora de funk, explicando como o “Muito Além do Mar Vermelho” tinha mudado as suas vidas.
A princípio, era ideia incluir também uma ex-garota de programa que virou atriz, mas parece que não chegaram a um acordo quanto ao cachê.
No final do bilhete, que mais parecia uma carta devido a sua extensão, meu amigo mandava eu me preparar porque os pastores já estavam decididos a lançar uma continuação do primeiro livro.
Já havia até um título escolhido para a nova obra: “Muito Além do Mar Vermelho e Seguindo Adiante.”
Como tinha escrito o agora batizado “Muito Além do Mar Vermelho” o mais rápido que consegui e, principalmente, sem prestar o mínimo de atenção que fosse ao que estava sendo escrito, não me lembrava de quase nada do que escrevera.
Não cheguei nem mesmo a fazer uma revisão superficial no texto antes de encaminhá-lo para os pastores, um requisito profissional mínimo que todos os escritores fantasmas – até os mais irresponsáveis – devem obedecer antes de entregar qualquer trabalho a quem o encomendou.
Debitei mais essa “negligência profissional” a minha preguiça ancestral crônica, que havia se tornando ainda mais radical depois que me recolhi a minha caverna para fazer desenhos imaginários nas paredes.
Vai daí que, quando abri o “Muito Além do Mar Vermelho” e comecei a lê-lo, parecia que estava tomando contato pela primeira vez com um livro escrito por outra pessoa, a qual, eu, obviamente, desconhecia por completo.
Esse distanciamento esquizofrênico em relação ao texto me deixou curioso em saber de que diabos realmente tratava a porra do livro de um pastor-prodígio que pretendia conquistar um mundo de seguidores através de palavras impressas dentro de coloridas e desenhadas capas duras.
Mais ou menos uma semana depois, mandei um e-mail para o meu amigo que intermediava as negociações com os homens do Espírito Santo.
“Não vou fazer a continuação do porra do Mar Vermelho. Comecei a escrever um livro. Vai chamar “Sobre o Livro dos Pastores”. É uma reunião de reflexões que estou fazendo a respeito das coisas que o pastor-mirim disse no livro dele que eu escrevi.
“As primeiras 20 páginas já estão on line em um blog hospedado num servidor da Romênia desde ontem.
Uns amigos disfuncionais – antigamente eram chamados de hackers, é esse o termo ainda? -, eles bolaram um esquema maluco que dispara centenas de pop ups piratas que invadem os principais portais do país, e alguns até do exterior.
“O poup up é um selinho, dizendo ‘Sobre o Livro dos Pastores – Leia já antes e que seja tarde!’.
“Os caras dos portais vão arrumar, logicamente, um jeito de bloquear o troço, mas, até lá, vamos ver se acontece algo interessante.
“Abraços, velho!
Se eu tivesse ideia da encrenca em que estava me metendo, teria pelo menos usado um pseudônimo.
A questão é que a merda estava feita. Não demorou muito para que meu nome começasse a aparecer em alguns blogs meio obscuros como o autor de é “Escrachando o Demônio Com Um Chute Nos Bagos”
Alguns desses blogs (os menos obscuros) eram publicados em portais.
Um dia, provavelmente devido a um surto agudo de falta de imaginação de um pauteiro do caderno de cultura de um de um jornal relativamente conhecido, um repórter foi encarregado de fuçar esse “negócio” de “Demônio escrachado” que algumas pessoas andavam comentando na redação e nas redes sociais.
Na sequência, uma daquelas emissoras de TV, sempre a ponto de decretar falência por falta de anunciantes e dívidas trabalhistas, também entrou umas de fazer uma matéria sobre o assunto na editoria de variedades de um telejornal regional.
Passadas algumas semanas, uma repórter de um portal alternativo me ligou perguntando se eu não estava a fim de contar “toda a história”.
Perguntei de que porra de história ela estava falando. Ela me respondeu que já havia um considerável número de pessoas nas tais redes sociais dizendo que o é “Escrachando o Demônio Com Um Chute nos Bagos” era uma “resposta” ao best-seller instantâneo “Muito Além do Mar Vermelho”.
Afirmei a ela que esse pessoal só podia estar pirado. Garanti que jamais havido lido esse tal “Muito Além do Mar Vermelho” e nem sabia do que se tratava. Na verdade, eu estava andava realmente postando de maneira homeopática na internet trechos de um livro que eu andava escrevendo e que, por acaso, tinha o título provisório de “Escrachando o Demônio Com Um Chute Nos Bagos”.
Se o livro que havia começado a escrever via internet tinha alguma semelhança com o tal de “Muito Além do Mar Vermelho”, seja lá em que sentido fosse, tudo não passava de mera coincidência, pois, como já havia dito, nunca li o livro que a repórter estava citando.
De repente, a moça mudou o tom da voz e perguntou se, por acaso, tudo o que eu estava falando para ela não seria também parte da “história”.
- Mas, afinal, que história é essa que você está falando?
- A história do “Escrachando o Demônio”.
- Não estou entendendo sobre o que você está falando.
- Bom, é normal que você, a essa altura, queira esconder o jogo, mas o que eu quero saber é se isto que nós estamos conversando agora também vai entrar na história.
Quer dizer, ainda não existe uma história acabada, a história ainda está sendo escrita e esta conversa que estamos tendo agora, por telefone, também fará parte da história? E por que estão achando semelhança entre o livro que você está escrevendo e o best-seller escrito por um garoto que diz falar todo o dia diretamente com o Espírito Santo?
Desliguei o telefone sem responder nada e fui dar uma volta na chuva fina que tinha voltado a cair lá fora. Escorreguei na grama e fiquei estirado de barriga pra cima, sentindo os pingos batendo suavemente na minha cara.
um jornalista que tem preguiça de perguntar,
um escritor que não tem saco pra escrever
e um compositor que não sabe tocar.
(mesmo assim escreveu dois romances
e uma quantidade considerável de canções
ao longo dos últimos 40 anos - nota do editor)
No comments:
Post a Comment