Seus olhos azuis parecem ter vida própria. Giram pela sala antiga e não deixam de encarar seus visitantes de frente. Os cabelos curtos, a roupa simples mostram uma professora de idade mediana que enfrentou, e enfrenta, problemas quase insuperáveis. Mas a voz forte, clara, num português muito bem falado, revelam uma mulher forte, que defende suas convicções com persistência e força incríveis. Ela é Dona Maria Lúcia, a proprietária de uma área maravilhosa, muito grande, encravada na Serra da Mantiqueira pouco mais de seis quilômetros da cidade que recebe o nome do criador do Sítio do Pica Pau Amarelo, Monteiro Lobato.
O Museu que Dona Maria Lúcia mantém não é um verdadeiro museu, fato que ela mesmo deixa claro. " Lobato viveu aqui apenas sete anos. Depois mudou-se para Taubaté. O sítio pertenceu ao avô dele, que, depois de morto, o deixou para o escritor. Como não sabia administrar ou lidar com dinheiro, Lobato o vendeu ao meu avô, que o deixou ao meu pai e, finalmente, para mim".
Ela não se preocupa em levar os visitantes pelos salões do enorme casarão colonial , que começou a ser construído em 1870 e só foi terminado 10 anos depois. Abre as portas, vai cuidar de suas coisas e espera estrategicamente na saída, quando inicia sua longa fala sobre o autor de quem tanto gosta.
"O primeiro livro dele, "Urupês", foi escrito naquela escrivaninha perto da porta. Temos fotos dele escrevendo o livro, que, aliás, deveria se chamar "Os 11 funerais". A editora portuguesa não gostou do nome e ele resolveu mudar para "Urupê", uma praga que ataca as raízes da árvores e as mata lentamente. Como eram 11 contos, virou "Urupês". O interessante é que muita gente leu esse livro e não conhece essa história nem se dá ao trabalho de procurar o significado de urupê! A falta de leitura é uma doença brasileira e eu procuro incentivar as pessoas sempre que posso..."
Pouca coisa se vê do mais famoso e grande escritor infantil brasileiro, um detalhe que Dona Maria Lúcia contesta. Na sua opinião, ele é um grande escritor brasileiro. Umas duas fotos - uma delas conhecidíssima -, algumas gravuras e nada mais. O mobiliário é de uma variedade notável: peças antigas, algumas muito antigas, outras modernas, recentes, e algumas surpresas como a cadeira que vira uma escada. "Pouca coisa aqui foi usada pelo Monteiro Lobato. E faço questão de explicar às pessoas que o importante é saber que aqui ele escreveu o Sítio do Pica-Pau Amarelo. As pessoas precisam entender que ele ainda está por aqui. Tenho certeza de que ele nasceu aqui. Não faz muito tempo, uma moça veio visitar o museu e ficou intrigada porque eu não a acompanhei. Então, disse para ela para dar o braço para o Lobato que ele a levaria pelos salões: ela ficou apavorada e quase que foi embora... pensou em fantasmas!"
O casarão que Dona Maria Lucia luta para manter é de impressionar qualquer um. Trata-se de um colonial português/brasileiro completamente despojado, mas com um pé direito de fazer inveja: mais de 4 metros de altura. As portas são imponentes, de madeira de lei, pesadíssimas e emolduradas com o mesmo material, como se fossem quadros. As portas, além das tramelas, ainda têm as trancas, enormes pedaços de madeira colocados de lado a lado, apoiados em ganchos. O piso, ainda original, é de pinho de riga, coisa rara nos dias de hoje. Nota-se um certo abandono, falta de manutenção, detalhe que Dona Maria Lúcia também não esconde:
"Não recebo ajuda de ninguém, Graças a Deus! Nem da Prefeitura, nem do Estado e nem da Federação". explica orgulhosa. "E se algum político aparecer por aqui, será maltratado. Não quero nada com eles. Este nosso País sofre nas mãos deles e não gosto de nenhum. Dentro das minhas possibilidades vou lutando e mantendo o Sitio do Pica Pau Amarelo, é quase um milagre..."
Uma coisa Dona Maria Lúcia não aceita e não aceitará: a pasteurização dos personagens do Sítio. Revolta-se quando comenta a série que passou na TV, afirmando que foi "um verdadeiro crime. Vocês viram o que fizeram com os personagens e com a estória? Não vou admitir nunca que se altere as estórias e inventem tanta bobagem como no seriado da TV. Não quero transformar isto aqui numa Disneylândia. Os personagens do Sítio são humanos e cada um deles tem seu papel: Dona Benta é a sabedoria formal, dos livros; Tia Anastácia é a sabedoria da vida, da experiência. Narizinho e Pedrinho somos nós, que lutamos para viver bem. O Visconde, o Rabicó, o Saci são personagens tão fortes que não precisam de pasteurização. Vejam o caso daquela Cuca que a TV inventou. Em nenhum dos livros da coleção infantil de Monteiro Lobato ela aparece. Apenas em um deles Tia Anastácia canta a música da Cuca (dorme neném, que a Cuca vem pegar...) e a TV criou uma feiticeira louca! Ela não faz parte das estórias de Lobato..."
Um dos personagens mais queridos de Dna Maria Lúcia é o Visconde de Sabugosa. Além de sábio, equilibrado, ele é o único que ressuscita, pelas mão mágicas de Dona Benta. "Ele é uma espiga de milho. Assim, um alimento que porcos, cabras, cavalos sempre comem. Mas Dona Benta o traz de volta com toda aquela sua sapiência. A morte mais triste do Visconde foi quando caiu atrás da estante de livros e ficou esquecido. Coitado, ele pegou mofo, apodreceu e morreu bem atrás dos livros que ele tanto ama. Ressuscitou mais uma vez, mas a imagem que Lobato deixa clara é a do povo brasileiro que não gosta de ler, que faz pouco caso dos livros. É muito triste".
O entusiasmo, a formação de professora, levam Dona Maria Lúcia a se emocionar e a mostrar um outro lado da moeda: seu nacionalismo desacerbado. Não aceita, por exemplo, que brasileiros leiam livros de escritores estrangeiros sem antes ler todos os brasileiros.
"Lobato,
Machado, Veríssimo, Casemiro são nomes desconhecidos dos jovens brasileiros, que se deixam levar pelos estrangeiros. Não suporto isso. Nosso País é incrivelmente bonito, bom e rico. Não precisamos de nada e de ninguém..."
Nem mesmo a questão do dinheiro, que poderia dar um enorme suporte para seu Museu, é levada em consideração: "nunca permitirei bonequinhos dos personagens passeando Sítio. Já imaginaram bonequinhos, como o Homem-Aranha? Não, nossos personagens são verdadeiros, são a cara dos brasileiros. Devemos entende-los e estuda-los..."
Alguns funcionários que trabalham na roça, nas proximidades do casarão, começam a chegar. Dona Maria Lúcia prepara o almoço (um delicioso cheiro de galinha frita, feijão preto, farofa, arroz, couve à mineira, torresmo invade o casarão...) e lembra que eles, com suas roupas simples, não são bem vistos nos shoppings ou lojas mais sofisticadas. Com um certo exagero, ela faz questão de exaltar: "coitados, sofrem preconceito pelas roupas humildes que têm. Isso sim precisamos mudar no país. Ela comenta ainda da cachoeira das Águas Claras, do pomar e de alguns lugares que o Sítio oferece. Personagens caracterizados para receber crianças? Nem pensar. Dona Maria Lúcia dá um sorriso irônico. Não, ela não vai permitir que o Sítio do Pica-Pau Amarelo se transformar numa Disneylândia...
Na saída, uma enorme placa mostra todo o apelo de Dona Maria Lúcia:
Álvaro Carvalho Jr. é jornalista aposentado
e trabalhou para vários jornais e revistas
ao longo de 40 anos de carreira.
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quando quer e quando sente vontade,
pois, como dissemos acima,
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