Quando atravessava o pátio de uma das universidades de Santos, encontrei-a pela enésima vez, mas mantive minha distância platônica. Uma professora pequena, cansada, com feições sérias. Ao mesmo tempo, rápida, agitada, transmitindo a sensação de que sempre há algo por fazer. Talvez para não quebrar a aura que construí em torno dela, nunca me aproximei para agradecê-la. A professora foi uma das responsáveis pela minha paixão por livros, embora não concorde – 25 anos depois – com muitos de seus métodos. Mas o “estrago” estava feito: a leitura como combustível de formação do homem.
A lembrança pessoal é simplesmente o ponto de partida para a reflexão sobre este trabalhador contraditório, demasiado humano. É justo fazê-lo provar do próprio remédio? Sim, avaliá-lo sempre, e não enaltecê-lo um dia por ano. Distorção infeliz seria se apagássemos do quadro negro o antagonismo de suas qualidades e defeitos, elementos que o completam.
A cultura latina recomenda: mortos devem ser beatificados e dia comemorativos jamais devem servir para críticas. Assim deveria ser a reação diante de valores culturais: respeita-se, compreende-se, mas não necessariamente se aceita. A história brasileira, para ser mais específico, é desfavorável à figura do professor. O Brasil, durante a colonização e o período imperial, caminhou sem um sistema de ensino. A educação não fez parte dos planos durante quase 400 anos. A nação montou seus alicerces sem a presença de livros e educadores formais.
A elite brasileira sempre estudou fora do país. Ainda hoje o faz. Os endereços apenas se alternam. Inglaterra, França, Estados Unidos, Austrália. Depende do período histórico e dos cursos da moda. É claro que há exceções, mas que se mostram frágeis ou paliativas para mudar o cenário. O professor é personagem afetado diretamente; figura desvalorizada, vista muitas vezes como um empecilho para o desenvolvimento de um grupo de pessoas tuteladas por ele. Um entregador de informações para aqueles que visualizam os alunos como clientes e a escola como shopping center.
Pensar no papel social dele é o mínimo que se espera diante de um quadro tradicional de descontinuidade de políticas públicas. Este profissional é algoz e vítima da crise (eterna – podemos chamá-la assim?) da educação brasileira. O professor é vítima quando se mostra fruto do próprio sistema público, desmantelado a partir de 1964, inchado a partir da década passada e que hoje se enxerga diante de uma encruzilhada: apostar na qualidade e perder parte dos alunos ou direcionar os recursos para mantê-los por mais tempo na sala de aula a qualquer preço.
O capuz de algoz lhe cabe bem quando o sistema o posiciona como ator principal de um teatro de sombras, no qual o jogo de cena tem valor substancial, e a essência entra como elemento de figuração. Neste momento, veste o papel de operário no sentido de apenas cumprir programas genéricos, sem o tom de pessoalidade que deveria estar presente na rotina de um processo de ensino-aprendizagem.
Ser professor é uma atividade desconectada ao reconhecimento do outro. O puro contra-senso do ser humano, que busca nas pessoas seu próprio caminho. Isso fica mais evidente numa sociedade calcada nas aparências, na qual ser julgado e absolvido pelos pares é inerente às relações sociais. A falta de reconhecimento se manifesta pelo próprio trabalho dele, incapaz de ser demonstrado em períodos curtos e normalmente percebido – inclusive em momentos ruins – pelo exercício da memória do aluno quando fora da rede escolar.
O professor se caracteriza, por outro lado, pela insatisfação inerente a si mesmo. Todos os motivos anteriores o levam a reclamar do terreno a sua volta. Faz parte do exercício de crítica. Todo professor se julga um crítico social. O que ocorre, às vezes, é que muitos se deleitam com este exercício e se contentam em apenas ouvir o som da própria voz. Um prazer narcísico e doentio. A partir daí, sua figura se deteriora e ele sobrevive graças ao mero ritual mecânico de vomitar conteúdos para uma platéia disforme, desumanizada.
Na mesma universidade, outro professor me chama a atenção. Tive aulas com ele e somos colegas. Suas opiniões ultrapassam os limites das salas, ganham corredores e pátios. Ele personifica a esperança no discurso para formar novos jornalistas, em tempos de pressões do mundo do entretenimento e do marketing. Por outro lado, não deixa escapar a chance de se queixar de todos os atores envolvidos nos universos acadêmico e jornalístico, inclusive ele próprio.
Os dois professores, de português ou de jornalismo, têm seus métodos, seus paradoxos, suas esperanças. Levam com eles a consciência – cristalina como água – de que formar pessoas é um território que ultrapassa as frágeis fronteiras da transmissão de informação e conhecimento. Formam seres para o mundo. E, acima de tudo, carregam e exibem com orgulho as cicatrizes de suas contradições. São humanos e – por que não? - educadores.
(publicado originalmente em 12 de Novembro de 2007)
é o cronista santista número um, ponto.
É autor de "Quando Os Mudos Conversam"
Realejo Livros),
coletânea de crônicas escritas
entre 2007 e 2015,
e mantém uma coluna semanal
no Boqueirão News
que é aguardada com avidez
por sua legião de leitores.
Atendendo a um pedido
de LEVA UM CASAQUINHO,
ele se dispôs a resgatar
algumas de suas crônicas favoritas
escritas nos últimos anos
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