É a hora por que Larry (Algee Smith) ansiou toda a sua vida. Está a segundos de subir ao palco acompanhado dos seus comparsas de banda. O conjunto chama-se The Dramatics. O drama vai acontecer, de facto, mas não será naquele palco. Detroit está a arder lá fora. A turba enfurecida não tem reservas a expressar o seu ódio pela autoridade branca, a da classe política e a das forças policiais. A multidão destrói vitrinas, incendeia edifícios e grita por sangue. Larry não chega a estrear-se em palco, porque a casa de espectáculos da Motown tem de ser evacuada. A lei marcial impera e, portanto, o espectáculo “mustn’t go on”.
A história do filme de Bigelow também é um pouco assim: começa por espraiar-se, cobrindo horizontalmente o território da cidade, aqui representado como campo de combate ou paisagem de um western nocturno convulso (carpenteriano?), mas depois o palco muda. Transitamos da rua para um motel, cenário predilecto de um filme de terror. O tempo ganha densidade, verticaliza-se. Somos encerrados num microcosmos. O que se encena aí? O teatro da brutalidade policial que tem como alvo a população negra. Estamos no coração do problema, no centro do furacão – passa-se isto em meados dos anos 60, mas será que hoje, em 2017, já saímos verdadeiramente dele?
A coabitação, entre negros e polícias brancos racistas, é de tal ordem que a certa altura me perguntava se Detroit (2017) não podia ter aberto o passado MOTELX. O terror contamina a atmosfera. Não há divisória naquele motel onde não se sinta a iminência da morte. O vocalista dos The Dramatics foi levado pelo destino até ali. Será apenas uma das várias vítimas de um banho de sangue tão injustificável e insano quanto “compreensível dadas as circunstâncias”. É aqui que o filme Bigelow se torna verdadeiramente perturbador e, até ao fim, inquietante: numa situação de caos, com a paranóia, o medo e a raiva à solta nas ruas, nenhum polícia – muito menos um formado numa cultura que cultiva o ódio racial – está em condições de controlar qualquer situação vivida em tenso confinamento. Já havíamos sentido claustrofobia noutro cenário de guerra montado por Bigelow, desta feita, fora dos Estados Unidos; no campo aberto do Iraque, quando fomos enfiados no fato de protecção do operacional de minas e armadilhas de The Hurt Locker (Estado de Guerra, 2008) – naquele fato, o protagonista interpretado por Jeremy Renner lembrava a imagem de um astronauta perdido no espaço sideral – e no tenebroso “forte” onde Osama Bin Laden foi encontrado morto pela agente especial de Zero Dark Thirty (00:30 A Hora Negra, 2012) – labirinto sinistro onde os militares americanos se movimentam às cegas.
Em Detroit também somos enfiados num fato de astronauta. Não literalmente, mas pelo e no rosto de Dismukes, o segurança interpretado por John Boyega – sabemos desde, pelo menos, Strange Days (Estranhos Prazeres, 1995) como Bigelow gosta de canalizar, e por vezes confrontar, a subjectividade do espectador no próprio tecido dramático. Boyega dá rosto a tudo o que se passa no motel. É ele o nosso farol. O primeiro dos espectadores é também das personagens que menos falam. A sua mudez sinaliza impotência – a nossa, na sala escura, procurando “às cegas” um sentido em tudo aquilo? Também. Da mesma maneira, o atordoamento é da mesma estirpe daquele que vivêramos antes, em The Hurt Locker e Zero Dark Thirty. O labirinto tenebroso não é o da residência do homem-mito mais procurado do planeta, mas é o do motel, onde se constrói o cerco dramático que vai apertando – e estrangulando – as personagens e nós com(o) elas. A câmara de Bigelow é nervosa, documental, imersiva. E não perdoa.
A lei marcial em Detroit é como a tempestade processual ou burocrática que rodeava Jessica Chastain em Zero Dark Thirty. Chastain era também a primeira espectadora nesse filme, uma flor rubra e delicada no meio de um deserto escuro (o da administração política e técnica da guerra). O rosto de Chastain, monumentalmente capturado no último plano, é aí o grande contra-campo estético e moral do lado mais escondido (que está para lá da mais vulgar maquilhagem político-mediática) da guerra contra o terrorismo – em Blue Steal (Aço Azul, 1989) Bigelow fazia confluir a história de um assédio brutal à mulher polícia Jamie Lee Curtis (eu sabia que ia conseguir citar mais uma vez Carpenter) numa imagem final do seu rosto à deriva, contemplando o vazio. Não era alívio, era (ainda) atordoamento. Um atordoamento de aço. Podíamos dizer o mesmo sobre Boyega face à injustiça e brutalidade dos polícias brancos. Tudo passa – e é dramaticamente filtrado – por ele. Mesmo quando a câmara não o está a filmar.
A imobilidade, e putativa impotência, de Boyega estilhaça qualquer necessidade retórica – pena que o filme ceda um pouco a esta no fim. Mesmo quando o filme sai do motel – e, de facto, perde brilho nas cenas de tribunal -, este não deixa totalmente o perímetro do rosto de Boyega. Na realidade, é por ele e nele que nos é dada a possibilidade de assistir ao verdadeiro julgamento, isto é, a tudo aquilo que o falso julgamento não nos dá: um sentido de justiça, uma prova arrebatadora de humanidade. A agitação nem sempre bem temperada da câmara de Bigelow – que convenciona um olhar documental no seio de uma robustíssima ficção – está ali para sublinhar o que não muda: a incompreensão e desorientação de quem não entende sequer a razão de ser do racismo. O polícia branco, racista e homicida, tem razão no que diz à saída do julgamento: o homem encarnado por Boyega é sólido. Da mesma forma, a humanidade da câmara de Bigelow não se verga, porque tem nos seus homens o seu alicerce ético – é muito walshiana nesse sentido. Esta mulher de armas conhece e dá a conhecer os seus homens na superfície do seu rosto, muito para lá – ou, na realidade, aquém – da cor de pele, do credo, do género ou do estrato social. Sólido humanismo em tempos incertos e atordoantes.
DETROIT
(Detroit, 2017, minutos)
Direção
Kathryn Bigelow
Roteiro
Mark Boal
Cinematografia
Barry Ackroyd
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