Friday, May 1, 2015

AS COMPANHIAS DE SHAKESPEARE (por José Luiz Tahan)


Publicado originalmente no PUBLISH NEWS em 15/10/2012


Seu Lopes, meu sogro, sempre que visitava uma cidade procurava os mercados municipais e suas peixarias. Como bom peixeiro que foi, não abria mão de ver os seus colegas de ofício e suas artimanhas. Lembro sempre dele me contando que amarrava as barbas de um camarão em torno do seu próprio dedo e oferecia para uma criança sugerindo que sua mamãe o fizesse fritinho.

Era tiro e queda: mamãe estava fisgada.

Visitei algumas cidades também, em férias com a família. Portugal é destino obrigatório, a família da Ana está quase toda por lá, portugueses da gema. Somos recebidos com entusiasmo com direito a vinte dias de leitões, arroz de marisco, sardinhas e pastéis de Belém, os verdadeiros, feitos na fábrica e pastelaria do bairro de Belém, em Lisboa.

O vinho é caseiro, feito pelo Pinheiro, tio e mestre. Bebemos de pé na adega por horas e sempre sem ressaca, Pinheiro sabe das coisas.

Levamos pela primeira vez o nosso caçula, o José Miguel. Alice e Nina já são veteranas. Os priminhos se reencontram e se adoram, ouvem seus sotaques e se admiram de lá e de cá, mas não comentam. Flagrei a Luizinha chorando de emoção ao ver a Alice, minha filha mais velha. Sem me controlar também chorei: elas têm seis anos e não se viam há três, as primas.

Nos despedimos de Portugal com os dentes tingidos de vinho e fomos para a França.

Pela primeira vez conferi sem mediações eletrônicas a cidade. Como disse o amigo Vitor Knijnik, acachapante. Monumentos grandiosos e vida miúda se misturam. Os parisienses são magros, olham em frente sabendo quando são notados, com suas baguetes aos nacos, caminhando e mastigando, e seguindo a canção.

E lá fui eu em busca do meu mercado de peixe. Me separei do nosso grande grupo composto pela Ana, a prima Ana Cláudia, que nos acompanhou e ajudou com os três pequenos na viagem.

Elas foram ver vitrines pela Galeria Lafayette e eu fui conhecer a lendária livraria Shakespeare and Company.

Munido de um mapa e do meu inglês macarrônico (um dia aprendo, juro) gesticulava aos taxis que me ignoravam. Será que notam assim, de longe, que sou um iletrado em vossa língua mãe? Meu gesto seria agressivo, errado? Depois de algumas negativas pedi informações a um taxista, que aguardava não sei o quê, dentro do seu carro, numa esquina. Motoristas não param em qualquer local, só próximos aos pontos de táxi, que são como os de ônibus - ficamos parados junto aos postes com a placa e chamamos dali. 

Um camarada de origem egípcia topou me levar até Saint Michel, na Rive Gauche, próximo à catedral Notre Dame: meus dedos mostravam o mapa e ele dava sinal positivo.

Li alguns livros que me ajudaram nas referências de que buscava. Sérgio Augusto com E foram todos para Paris, da Casa da Palavra, além dos relatos de Jeremy Mercer e da fundadora da Shakespeare and Co., Sylvia Beach. Todos da mesma editora.

Ao chegar, tive a visão daquela pequena e linda livraria, que tem quase um século de grandes histórias. James Joyce publicou seu “Ulysses” pelas mãos de Sylvia Beach. Hemingway e tantos outros escritores de língua inglesa adotaram a pequena livraria como seu ponto de encontro - foi e é um espaço carregado de significado. Percorri suas salas abarrotadas de livros, sem paredes, e vi cantos com leitores sentados ombro a ombro, compenetrados. Vi um cantinho infantil, um piano numa saleta.

Fui caminhando para fora e notei, no caixa, um livreto que contava a história da livraria. Seu último dono, George Whitman, morreu em 2011. Sua filha, uma loirinha com olhos fixos e frios estava estática no caixa. Me vendeu um exemplar do livreto. Falei que era um livreiro do Brasil. Ela me perguntou se queria sacola. Disse que sim, tirei umas fotos proibidas e temi pelo futuro da Shakespeare and Co.

Meu sogro acharia algo estranho, talvez um belo peixe com olhos opacos. É bom ter cuidado.


José Luiz Tahan, 41, é livreiro e editor.
 Dono da Realejo Livros e Edições em Santos, SP,
 gosta de ser chamado de "livreiro",
 pois acha mais específico do que
 "empresário" ou "comerciante",
 ainda mais porque gosta de pensar o livro
 ao mesmo tempo como obra de arte e produto.
 Nas horas vagas, transforma-se
 no blues-shouter Big Joe Tahan.




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