Wednesday, August 19, 2015

SÃO PAULO S/A: O CINEMA INSTRUMENTO DE CRÍTICA SOCIAL (Quarta, 19hs, Cineclube Pagu)

por Luís Alberto Rocha Melo
para Contracampo


No ano em que Luiz Sergio Person lançou SÃO PAULO S/A, 1965, o então jovem crítico de O Estado de S. Paulo e futuro realizador Rogério Sganzerla publicava uma série de três artigos no Suplemento Literário sobre o cinema da “alma” (Bergman, Fellini, Zurlini) e do “corpo” (Godard, Fuller, Hawks). Os textos “Cineastas da Alma”, “Cineastas do Corpo” e “Corpo Mais Alma” (reproduzidos no livro Por Um Cinema Sem Limites, ed. Azougue, 2001) opõem um cinema pretensamente “profundo”, que busca dissecar a “alma humana” em dramas no fundo literários e tradicionais (caso dos “cineastas da alma”) a um cinema fundamentado pela “distância cínica” de uma câmera interessada em registrar a violência e a agilidade das “tragédias físicas” (os “cineastas do corpo”). Há ainda um cinema que consegue unir essas duas tendências em filmes ao mesmo tempo clássicos e modernos (ou melhor, modernos porque clássicos e vice-versa). Nas palavras de Sganzerla: 

Fragmentos e faces da realidade unem-se num bloco indivisível; os dramas interiores com os exteriores, sem predomínio ou exclusão de um ou outro; o concreto dirige-se ao abstrato e vice-versa; ficção é documentário e este é ficção; fundem-se harmoniosamente gêneros e até estilos diferentes, sem rupturas do tom geral; o belo e o feio não se distinguem mais, etc. Idem o corpo e a alma.” (“Corpo Mais Alma”, in Por Um Cinema Sem Limites, cit., p. 89).

O plano inicial de SÃO PAULO S/A mostra um apartamento de classe-média, filmado pelo lado de fora da janela, no interior do qual um casal (Walmor Chagas e Eva Wilma) discute e briga. Não conseguimos ouvir as palavras dos dois personagens, apenas alguns gritos. A certa altura, o homem gira o braço por cima da mesa e derruba pratos, copos, xícaras. Ela se agarra nele, ele a derruba no chão, saindo em seguida. Como toda a ação é filmada do exterior, vemos no reflexo do vidro da janela, como uma sobre-impressão, os prédios vizinhos que desenham e configuram a capital paulista, a pairar como um fantasma sobre a cena conjugal. SÃO PAULO S/A revela, logo em sua primeira imagem, o extraordinário domínio expressivo de seu realizador: cineasta da alma e do corpo, Person estreava no longa-metragem com uma obra-prima clássico-moderna, de um rigor e de uma densidade ainda hoje bastante raros.


O que se promete na primeira imagem do filme será cumprido até o fim: o drama de Carlos (Walmor Chagas) terá como palco e motor principal a cidade de São Paulo. A imbricação dos dramas (“interior” e “exterior”, do personagem central e do país) será construída de forma a tornar SÃO PAULO S/A um dos mais amargos retratos da classe-média brasileira, amargo porque necessariamente pessimista. 

Carlos, um jovem recém-formado em desenho industrial, arruma um emprego na Volkswagen, durante o boom da indústria automobilística que se forma a reboque da instalação das multinacionais no período JK (o filme se passa entre 1957-61). Dividido entre as amantes Ana (Darlene Glória) e Hilda (Ana Esmeralda), Carlos acaba por se casar, mais por cansaço do que por amor, com Luciana (Eva Wilma). Com as amantes Carlos experimenta uma liberdade frustrada, não consegue dominá-las nem render-se a elas. O casamento com Luciana surge com a mesma lógica de um emprego: é o percurso que cabe a um jovem cuja perspectiva de vida é traçada não propriamente pelos seus desejos e ações, mas pela ordem capitalista. Arturo Carrari (Otelo Zelloni), imigrante italiano que prospera rapidamente no ramo de autopeças, conta com Carlos para facilitar a venda de suas peças para a Volkswagen. Uma vez posto na rua, Carlos se torna empregado de Arturo, que prospera rapidamente. Para Luciana, Arturo é um modelo, é rico, pai de família e possui uma casa no campo. Tanto em seu casamento como em seu trabalho, Carlos é possuído por um constante mal-estar: se pudesse, abandonaria Luciana, Arturo, a própria cidade. Sua revolta, no entanto, é frágil. O conformismo é a tônica de Carlos, irremediavelmente preso à engrenagem que o consome e que resseca, dia após dia, a sua alma.

As relações entre o filme de Luiz Sergio Person e o movimento do Cinema Novo costumam ser pouco exploradas, fato que em parte se justifica pela tradicional indisposição dos cinemanovistas cariocas com o cinema paulista. Ainda assim, a importância de SÃO PAULO S/A para o cinema brasileiro dos anos 1960 merece sempre ser lembrada, bastando dizer que, embora em outro plano estilístico, a estrutura de SÃO PAULO S/A já antecipa a de um filme como Terra em Transe (Glauber Rocha, 1967): acontecimentos passados, mais ou menos recentes, emergem e se embaralham na cabeça do personagem central, que vive um momento extremo de crise. No filme de Person, como no de Glauber, a realidade está “lá fora” e ao mesmo tempo “dentro” do personagem, sem que se possam distinguir fronteiras precisas. Daí a supressão da ordem cronológica, o vai-e-vem das lembranças e das personagens, a interpenetração do drama interior na tragédia do país.


Se Carlos é um personagem que tem sua vida aprisionada pelas injunções sócio-econômicas, oscilando entre a revolta e o conformismo, Paulo Martins (Jardel Filho), em Terra em Transe, também é regido pelo conflito e pela ambigüidade, dividido entre a política e a poesia, o populismo e a revolução. Em SÃO PAULO S/A, a euforia desenvolvimentista dos anos 1950 fundida à tragédia pessoal de Carlos fazem parte de uma mesma leitura simbólica sobre o país pós-golpe de 1964; no filme de Glauber Rocha, o dilaceramento de Paulo Martins atualiza e generaliza o desespero da intelectualidade, num prenúncio de um novo tempo de violência e arbítrio que se concretizaria após o AI-5, em 1968.

Há um outro elemento que aproxima SÃO PAULO S/A de Terra em Transe: ambos os filmes se constroem como um discurso interior do personagem principal. Nesse ponto, há que se ressaltar também o que diferencia essas duas grandes obras: as narrações em off de Carlos e de Paulo Martins apontam para direções não exatamente opostas, mas muito diversas. Em Terra em Transe, a poesia; em SÃO PAULO S/A, o romance.

Nesse sentido, para retomarmos a divisão proposta por Rogério Sganzerla em 1965, Luiz Sergio Person seria eventualmente um “cineasta da alma” (porém não mais do que o Glauber de Terra em Transe!). O que felizmente torna insuficiente tal classificação – se nela quisermos enxergar, como faz Sganzerla, uma “falsa profundidade” –, é o fato de que Person consegue realizar um quase miraculoso meio-termo entre o drama interior envolvente e a crítica distanciada do personagem. É justamente isso que aproxima SÃO PAULO S/A de alguns traços do cinema de Michelangelo Antonioni e de Luchino Visconti (o que talvez traia a formação de Person no Centro Sperimentale di Cinematografia de Roma, entre os anos 1961-63). Uma narrativa realista, notavelmente amparada pela excelência fotográfica de Ricardo Aronovitch e pelas performances de Walmor Chagas e de Otelo Zelloni, é habilmente des/construída em saltos e desvios pela montagem poética não-linear de Glauco Mirko Laurelli: um alto padrão técnico, nunca a serviço do virtuosismo, funde-se à consistência de um drama livremente arquitetado. Em relação à tradição paulista, SÃO PAULO S/A representa um salto considerável por sobre a Vera Cruz, Tambellini/Biáfora e Walter Hugo Khoury, sem deixar de com eles dialogar.


Em um certo sentido, porém, SÃO PAULO S/A é como Limite (1930), de Mário Peixoto: um filme sem continuidade. A perspectiva aberta por Person mesmo hoje parece pouco experimentada. O próprio realizador não se repetiu: SÃO PAULO S/A quase nada tem a ver com O Caso dos Irmãos Naves (1967), com o episódio que dirigiu para a Trilogia do Terror (1968), com Panca de Valente (1969) ou com Cassy Jones, o Magnífico Sedutor (1972). Morto prematuramente em 1976, aos 40 anos de idade, Person deixou uma obra heterogênea, composta não só de longas mas de curtas-metragens e muitos comerciais (os extras do DVD trazem alguns, imperdíveis). Para uma historiografia interessada em classificar correntes e ciclos, a obra de Person - como a de um Fernando Cony Campos, por exemplo - cria sérios problemas, pois escapa às deduções mais óbvias e preguiçosas.

Tudo isso aumenta ainda mais a importância do lançamento em DVD deste filme. Assisti-lo hoje significa reatar com uma obra única e ao mesmo tempo tão fértil para o cinema brasileiro passado e atual. Num momento em que se produzem tantos filmes sem corpo e sem alma é quase uma surpresa verificar o imenso legado de um filme como SÃO PAULO S/A.


SÃO PAULO S/A
(1965, 107 minutos)

Roteiro e Direção
Luis Sergio Person

Cinematografia
Ricardo Aronovich

Elenco
Walmor Chagas
Eva Wilma
Darlene Glória
Nadir Fernandes

Ao final da exibição,
 um breve debate com os curadores
 do Cineclube Pagu:
 Carlos Cirne e Marcelo Pestana
Quarta - 12 de Agosto - 19 horas
OFICINA CULTURAL PAGU
Rua Espírito Santo, 17 
quase esquina com Av. Ana Costa
Campo Grande, Santos SP
Telefone: (13) 3219-2036






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