Wednesday, February 15, 2017

ÁGUA DE CACHORRO LOUCO (uma crônica de Ademir Demarchi)



“invejo o negrão quando batuca/ cuíca zombando da dor que cutuca minha crica/ se blues dá o ar da sua graça/ misturo com qualquer coisa a cachaça/ se solta da boca do amor mais puro/ um hálito quente de futuro// me engana que eu gosto, anjo lindo!/ já chamei absurdo de bem-vindo/ esmurrei a cara da saudade/ logo logo dou um jeito na realidade”.

Esses versos são do poema “Água de cachorro louco”, que está no livro "Me pergunta se eu mudei", do escritor Augusto Silva, filho de pai negro com mãe alemã, errante pelo norte do Paraná entre Londrina e Umuarama, que se formou na cena londrinense do anos 1980 bebendo no mítico Bar Valentino, tendo no entorno da fumaça, além dos ecos de Leminski, músicos e escritores como Mário Bortolotto, Marcelo Montenegro, Ademir Assunção, Arrigo Barnabé, Itamar Assumpção...

Com um pé na poesia, acentuadamente oralizada, para declamar, Augusto Silva escrevia pensando em blues, tendo feito muitas gravações em parceria, focando festivais como o de Paranavaí – duas delas estão no CD encartado na Antologia de poetas londrinenses que em 2000 reuniu a nata da época.


Essa oralidade, marca da sua escrita, que se desdobrará depois no livro de ficções, editado pelo autor, "O passo dos foragidos", vem do convívio com o povo em botecos ou na feira, tal como explicita no poema de “Pergunta se eu mudei”: “aprendi falar na feira/ na banca do Zé Pereira// Hilda madurava caqui; dava dinheiro pro cinema e gibi// eu me alugava com Kardec e catecismo; depois vendia na feira meu ceticismo// o charme das maçãs empilhadas; só perdia pros pastéis da dona Geralda// trazia nas garras/ sangue de pássaro bonito// e fermentava os licores/ que vou levando no bico”.

O catecismo do poema seria menos o dos hipocritamente castos antros católicos e mais o do Zéfiro, daqueles quadrinhos pornôs que alimentaram as fantasias eróticas da baixa zona da ditadura, sinalizando o gosto da época por HQs, rock, cinema, romances policiais ou os haicais em que Augusto Silva também acertou na mosca, como neste: “ninguém na igreja/ espero que deus/ me veja”.


Segundo a apresentação ao seu autoeditado novo livro "Canções que não chegaram a tempo" (2015), depois de beber todas na juventude, ele se apaziguou numa chácara em Umuarama e se aplica no trabalho de professor e escritor, do qual resultaram esse "Canções..."  e o livro de ficções "O passo dos foragidos", que reúne a novela “Carmanguias” e os contos de “Noitíferas”.

Esses relatos são notáveis por focarem o submundo de marginais crackeiros, justiceiros, traficantes, contrabandistas, índios, travestis, loucos, pais de santo, mendigos, prostitutas e ratos que habitam o Norte e o Noroeste do Paraná, sobretudo de Umuarama e Cruzeiro do Oeste à fronteira com o Paraguai, tudo regado a estrada, jogo, drogas, bebidas e muito sangue e à sombra dos férteis agronegócios, contrabando de cigarros falsificados, herbicidas altamente tóxicos e proibidos, sonegações, roubos, falsificações de peças automotivas, sob a velada vida regrada da política, do comércio estabelecido e das igrejas e suas ovelhas santificadas e casamenteiras... Porém Augusto não doura a cena, nem passa pelas boas aparências, chuta logo a porta e entra pelo submundo afora.


Eis alguns excertos: “Ruas e suas histórias... Guadiana! A rua mais sórdida da cidade de Umuarama. Seu trajeto noturno evitado até pelos vida loca. Além de mal iluminado, aquele curto trajeto de cerca de 400 metros, depois de horas, só mesmo pra quem procura encrenca. Numa esquina, a rodoviária velha. Onde a canalhada cara queimada está sempre de olho na grana de algum trouxa pra farra dos malandros do tráfico de maconha, pó e crack. De frente à rodoviária, o hotel dos viajantes cujo nome só se justificaria pela quantidade de usuários que pagavam por hora pra se esconder ali a fim de viajar alguns momentos nas bad trips do bagulho. Sem falar na quantidade de bares de putas; nos quartinhos mocós de noias também alugados por hora; na movimentação de mototaxistas e personais traffic; nos gigolôs de putas pobres; nos veados velhos chupadores a troco dum trago de bagulho; nas tias maracujás de gaveta com quem alguns corajosos compareciam; nas lindas recém-chegadas à putaria de sainhas curtas e maquiagem pesada, a maioria viciadas em bebidas superfaturadas, cocaína e, muito principalmente, nas pedras diabólicas!”

“’Quer dar um rolê comigo hoje à noite. Vou fazer um pião, depois quero ir curtir lá na Batcaverna’. Pião, na linguagem de Ageo, era roubo mesmo. Tinha ido aquele dia pra colheita apenas pra sondar onde estavam guardados os defensivos agrícolas. Na boca da noite, Ageo tencionava roubar alguns galões. O sitiante vizinho tinha encomendado e pagaria com vinte pedras de crack.”

“...é muito fácil pegar droga fiado, mas aí você fica escravo do gato. Muitos dos motoristas de ônibus fazem vale direto com as pedras. Uma vez eu fui colher laranjas e cê acredita que, pra evitar contaminação no pomar, o dono exigiu que todo mundo fosse pulverizado com veneno. Mas tava todo mundo tão chapado de maconha, pinga e pedra. O que era mais um pouco de veneno...”

“Próximo à cidadezinha de Cruzeiro do Oeste, o fusca verde dos freaks estacionou no posto Colega. Os três amigos desceram pra esticar as pernas e beber uma cerveja. Pediram um quebra gelo: ‘Uma carqueja bem curtida’. ‘A que matou o guarda’. ‘Presidente, só se for o conhaque!’ Duas cervejas trincando chegaram à mesa dos freaks. Gurucaia reconheceu um velho amigo saindo do banheiro. Era Clóvis Bezerra, o famigerado Clovão! Ator. Puro cinema-humano. Mas o que ele estaria fazendo praquelas bandas? Gurucaia gritou: ‘Mundo pequeno, bandido! Tá perdido ou tá achado!’ Clovão controlou a emoção e aproximou-se silencioso. Compôs sua melhor cara e disparou: ‘Vocês conhecem o maior distribuidor de livros undergrounds do Paraná?! Tá falando com ele...”

“Os vultos negacearam em resmungos de conluios até assentirem que Flanel passasse. Era uma casa grande e sem sala com paredes de lajotas sem reboco, cozinha num canto e berço de bebê no outro. Sentada num sofá todo rasgado, uma viciada amamentava um menino duns quatro anos, quando lhe escapava da boca o chicletão sem leite o moleque abria o bué. Outras mulheres mobilizavam-se com o entra e sai dos noias. Flanel ouviu de um playboy algo sobre um táxi esperando no topo da quebra. A mãe esquelética levantou e deixou o chorão chorando, abraçou Flanel e, perguntada por Pai Tonho, ela entrou num cômodo e fechou a porta. Flanel esperou longos minutos com os olhos perdidos num velho calendário de Nossa Senhora Aparecida. Nessas alturas, o bebezão perdia o fôlego batendo a cabeça na parede. A viciada abriu a porta: ‘Não esquece da sua amiguinha!?’”



Ademir Demarchi é santista de Maringá, no Paraná,
onde nasceu em 7 de Abril de 1960.
Além de poeta, cronista e tradutor,
é editor da prestigiada revista BABEL.
Possui diversos livros publicados.
Seus poemas estão reunidos em "Pirão de Sereia"
e suas crônicas em "Siri Na Lata",
ambos publicados pela Realejo Edições.
Suas crônicas, que saem semanalmente
no Diário do Norte do Paraná, de Maringá,
passam a ser publicadas todas as quintas
aqui em Leva Um Casaquinho








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