Monday, February 27, 2017

ESCRACHANDO O DEMÔNIO COM UM CHUTE NOS BAGOS #15


PINTOU? UM CHUTE NA BUNDA
E VAMOS EM FRENTE!
(1ª temporada, episódio 15)


É engraçado a gente falar e ter outra pessoa repetindo o que a gente disse em outro idioma.

Isso já aconteceu comigo outras vezes, mas ainda não me acostumei.

Minha impressão é que o tradutor ou a tradutora não estão simplesmente traduzindo o que eu falei, mas também explicando melhor pra vocês o que eu não consegui explicar direito na minha própria língua.

Alguns dias atrás, sugeriram que eu devia mudar a minha medicação, fazer alguns ajustes, essas coisas.

Pensando bem, talvez essa sensação que eu tenho a respeito dos tradutores, que parecem conseguir explicar melhor o que quero dizer, seja um efeito colateral passageiro dos novos remédios.

Então, me desculpem se, vez por outra, esta noite, eu começar a divagar sobre outros assuntos que nada tem a ver com o nosso tema central.

Peço, inclusive, que se isso acontecer, vocês me chamem a atenção, para que eu volte aos trilhos.

Agora, estou imaginando o trabalho quer os tradutores tiveram pra tentar explicar a vocês o que eu acabei de dizer.

Mas essas coisas são aparentemente insolúveis, ou seja, sua solução não importa nem um pouco para o que realmente interessa. Bem, quero dizer que essas coisas insolúveis vão sempre aparecer no meio do caminho, seja lá o caminho que você estiver trilhando.

E, se estamos com pressa, isto é, com prazo marcado pra morrer, o que pode acontecer a qualquer momento, sugiro que não percamos mais tempo com essas coisas hoje à noite.

Pintou? Chute na bunda e vamos em frente.

Tenho a sensação de que alguns ou algum dos novos remédios começaram a fazer efeito neste instante.

Digo isso porque já não me causa mais desconforto o fato de ter alguém traduzindo o que eu digo.

Agora, parece que falamos todos a mesma língua, por mais impossível e absurdo que isso possa parecer.

Não é que tenhamos ultrapassado as barreiras das línguas. Elas continuam existindo, mas já não me sinto bem com o nível de sintonia sensorial que alcançamos a partir deste ponto.

Isso torna a barreira da língua bem mais amena. É possível que, em determinados assuntos, nem precisemos mais de tradução. O som das palavras dará o sentido exato sobre o que falamos.

Acredito que, nestes momentos muito curtos, estejamos realmente do outro lado da brecha.

Ali, do outro lado, eu acredito que seja possível estabelecer outros canais de comunicação muito mais visuais do que verbais, mais sensitivos do que racionais. Enfim, um jeito mais simples de dizermos exatamente o que querermos dizer uns aos outros, sem tanto ruído e tanta confusão causados pelas palavras como único meio de interlocução entre nós, humanos.

E a maneira mais óbvia (não disse a mais fácil) de viver o máximo de tempo nesse outro lado, nesse outro nível de comunicação é a compreensão profunda de que devemos agradecer a mijada que damos em cada momento, tentando ficar vivos para poder mijar de novo.

Tenho a sensação de que, infelizmente, vamos ter que encerrar nossa conversa aqui. Estou sentindo muito sono e preciso me deitar um pouco aqui para descansar.

Alguém poderia me ajudar a desligar os fios, sair da cadeira e deitar no chão?


Acordei num quarto de hospital. Soro no braço, máscara de oxigênio na cara.

Uma enfermeira se aproximou da cama, viu meus olhos abertos e foi chamar alguém.

Apareceu um médico careca que me perguntou se eu podia ouvi-lo. Fiz sinal com a cabeça que sim.

O médico disse algo incompreensível para a enfermeira, que espetou uma agulha no meu soro. Apaguei de novo.

Quando acordei, comecei a imaginar de que jeito conseguiram me tirar do centro do gramado do estádio, quem tirara minha maquiagem e como tinha vindo parar no hospital.

Não demorou muito e minha mulher e meu amigo apareceram e perguntaram como eu estava. Disse que, tirando a sonolência, tudo bem.

Meu amigo foi o primeiro a falar.

- Que porra te deu? Mudança de medicação? De onde você tirou isso? Você estava realmente drogado?

Toda a equipe da produção ficou maluca. Mas, por incrível que pareça, quando te retiraram do gramado, o público aplaudiu de pé, como se fosse o final de um show de rock.

Minha mulher não disse nada. Afinal, eu e ela planejamos tudo juntos, inclusive meu desmaio, provocado por três soníferos que havia ingerido logo no começo da palestra, confiando em que fariam efeito no momento exato previsto na bula.

O timing foi perfeito e, como ela já sabia o que ia acontecer, providenciou socorro de imediato, além de tirar minhas roupas e maquiagem antes dos caras da ambulância virem me buscar, mas, como logo em colocaram uma máscara de oxigênio, ninguém prestou atenção ao meu resto.

Uma performance irretocável.


JR Fidalgo,
um jornalista que tem preguiça de perguntar,
um escritor que não tem saco pra escrever
e um compositor que não sabe tocar.

(mesmo assim escreveu dois romances
e uma quantidade considerável de canções
ao longo dos últimos 40 anos - nota do editor)





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