No
primeiro domingo pós-folia uma experiência preciosa: assistir uma delicadíssima
adaptação de Henry James e seu universo para o teatro no Brasil! Quão
dissociado o palco e a literatura não fossem irmãos siameses. E a “Fera Na Selva”,
que vi no sempre charmoso Centro Cultural São Paulo. É um feito ainda mais
ambicioso por transpor à cena a obra dum autor denso e não tão dramatúrgico
quanto Henry James. Mestre do romance e virtuoso contista, James foi alçado à categoria
de gênio na tessitura estilística e rigor narrativo alçando status de teórico
involuntário do distanciamento ficcional,
do discurso indireto e elaborador de personagens com ares de dissecação.
Senhor
de perspectiva personalíssima, deve ser considerado altura das “catedrais literárias”,
como Proust e Faulkner, ampliando escopo da literatura até um projeto artístico
maior de retrato da condição humana pela técnica mais apurada possível. Nos
dava uma trama como deleite sem descuidar da ourivesaria. Encantador e artesão,
James foi ao lado de Flaubert um grande profeta das novas possibilidades e
responsabilidades da literatura no período de maior inovação tecnológica da
humanidade. O fim do século XIX com advento da fotografia, do cinema, do
telefone e irrupção do niilismo, de Nietzsche e da psicanálise, foram campo
fértil para essa empreitada de saber contar e refletir para quem contar as
grandes estórias. Ministrando oficinas literárias para atores, fascinado pela
comunhão da grande tradição literária com o teatro outra vez, utilizando-me dos
conceitos de James para romance e conto, imagine minha curiosidade por essa
empreitada que foi direção e concepção de Malú Bazán.
Com
necessário minimalismo de elementos cênicos, iluminação e sons protagonistas
sutis e magistral adequação do conto e aspectos biográficos, o espetáculo
sintomaticamente foi o link perfeito da dialogação “jamesiana” com
interpretação impecáveis de Gabriel Miziara e Helô Cintra Castilho. Sem cair no
didatismo a peça enfeixa trechos relevantes do conto que a intitula, aspectos
relevantes da trajetória de Henry James e de sua amizade com a escritora
Constance Fenimore Woolson que de certa maneira mimetiza a essência dessa
novela cada vez mais valorizada. “A Fera Na Selva” é da mesma família estética
de “Bartebly” de Melville ou de “Missa do Galo” de nosso Machado. Toda ela
atmosfera, evasiva, eloqüente, reticência contundente, tudo para expressar o
drama da incomunicabilidade, a intransferibilidade de sentimentos e a
condenação moderna a profunda solitude. James anuncia aí já rumos de Tchekhov e
Pirandello. Tudo é matiz, sugestão e convergência de emocionalidades
entrecortadas de despedida. A segura dramaturgia de Marina Corazza elabora
eficiente convergência: musica de câmara para nossos ouvidos tão desacostumados
da poeticidade intrínseca ao impressionismo e sua intimidade com o detalhe. Nítida
influência ou mesmo pesquisa no já clássico romance biográfico “O mestre” do
admirável Colm Tóbin, com delicadas referências a homoafetividade de James e
decorrente abortado afair com Constance.
Essa companhia é bem capaz de nos dar outras adaptações na mesma escala
e virtuosismo a partir de escritores que tiveram dificuldade com experiência
teatral ou nem tentaram por imperícia noutro suporte que não o livro. Quem sabe
um dia Clarice, Cortázar ou Borges?
Teatro de palavra, texto, locução direta e densa, desnudamento através
das entrelinhas, esmero na dicção no transporte do espírito.
Na
atualidade em que leio mega-produção-fake-broadway de “A Noviça Rebelde”, com
atores globais e patrocínio de leis de incentivo -- que alento saber que o
melhor da resistência se faz no subsolo desses tempos rasos. Até 18 de março no CCSP, uma verdadeira masterclass
de teatro e alta literatura de quinta a domingo! Detalhe: a peça denomina-se com riqueza
semiológica de “Aproximando-se de A Fera Na Selva”. Extrema destreza nesse “work in progress” onde
nada escapa e tudo nos provoca, pensar sobre alma humana e seu caleidoscópico
itinerário. Afinal para quem escrever, por que atuar, onde as perguntas
certeiras para nosso absurdo na busca e interação com outro. Que exercício de
arte! Recomendo....
Poeta, contista e crítico literário,
Flávio Viegas Amoreira é das mais inventivas
vozes da Nova Literatura Brasileira
surgidas na virada do século: a ‘’Geração 00’’.
Utiliza forte experimentação formal
e inovação de conteúdos, alternando
gêneros diversos em sintaxe fragmentada.
Vem sendo estudado como uma das vozes
da pós-modernidade literária brasileira
em universidades americanas e européias.
Participante de movimentos culturais
e de fomento à leitura, é autor de livros como
Maralto (2002), A Biblioteca Submergida (2003),
Contogramas (2004) e Escorbuto, Cantos da Costa (2005).
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