Thursday, February 22, 2018

MORA NA FILOSOFIA (uma crônica de Ademir Demarchi)



Em Santos, cidade que tem o tempo de vida do Brasil, mas que não tem guias turísticos para aumentar o tamanho das estórias populares, é preciso se contentar em ouvi-las em algum buteco. Uma delas se refere à venda de cadáveres dos cemitérios para servir de estudos na faculdade de medicina. Há várias versões, algumas mais antigas, outras quase contemporâneas. Nas cidades da região têm sido comum denúncias de secretários municipais que transformam sua repartição num balcão de negócios. O de meio ambiente vende licenças ambientais, o de comércio vende alvarás, o de obras negocia contratos e as compras de materiais, assim como o de saúde cuida com atenção estetoscópica das compras de medicamentos...

Daí, diz-se que um que veio um dia a administrar um cemitério, tendo ficado em desvantagem quanto ao que vender, logo achou um modo de comercializar dentes e ossos para os alunos, porém, não satisfeito, achou meio de entregar um finado fresco e empacotado para uma faculdade. Quem conta essa estória diz que ela teve um desfecho constrangedor, pois uma das alunas, ao levantar-se a manta que cobre o tanque de conservação da cobaia, desmaiou ao reconhecer um parente.

Plínio Marcos mesmo, o notável teatrólogo santista que levou as vidas miseráveis do cais para os palcos, era um exuberante contador delas. Numa ocasião em que morava no porão de uma entidade estudantil que ainda existe, meio abandonada, ele chegou com uma boa grana e convidou os companheiros de miséria para comer. Todos passavam fome e se ajudavam quando algum conseguia comida ou recursos. Mas dessa vez a grana estava alta para o normal e um dos alojados, o Negão, quis saber de onde vinha. Plínio, um sarrista dos diabos, disse que tinha vendido à faculdade de medicina o cadáver dele, que seria entregue oportunamente, logicamente quando morresse.

O Negão primeiro ficou de boca aberta, sem acreditar no que ouvia. Depois ficou bravo e esperneou dizendo “Por que você não vendeu o SEU cadáver, seu lazarento?” Plínio, na lata: “Ora, foi porque pagam por tamanho. Como sou quase um anão, você vale por dois!” Houve um bate boca acirrado mas todos se acalmaram com a boia à vista e a felicidade do bem estar que dá quando se come. Mas Plínio não perdeu a estória e pediu para umas amiguinhas do teatro ligarem para a entidade estudantil se dizendo da faculdade de medicina e pedindo que o Negão fosse lá para tirar medidas...


Corpos em trânsito, em Santos é intrigante o Cemitério da Filosofia, cujo nome parece ter sido feito para as discussões contemporâneas nessa área, especialmente pós Auschwitz. Lá está enterrada Maria Féa, a vítima do famoso crime da mala que se deu em 1928, como que inaugurando o traslado clandestino de corpos na cidade... Muita gente ainda vai lá rezar por ela em troca de um milagrezinho. Valêncio Xavier fez um, escrevendo um conto sobre ela, levando o corpo para outros lugares...

O fim da filosofia e Auschwitz estendem a conversa fiada: em Cubatão há um pequeno cemitério dentro de outro. Lá estão as polacas, judias que vieram traficadas para serem prostitutas e que foram meio que levadas escondidas já mortas para lá pela comunidade judaica, que nunca as aceitou como de seu meio, por mais que tenham sido vítimas de sequestro, violência e exploração.

Se o leitor quer um moral nessa estória toda, vai ter que buscar na filosofia...

[publicado originalmente no
Diário do Norte do Paraná
em 19/04/2013]



Ademir Demarchi é santista de Maringá, no Paraná,
onde nasceu em 7 de Abril de 1960.
Além de poeta, cronista e tradutor,
é editor da prestigiada revista BABEL.
Possui diversos livros publicados.
Seus poemas estão reunidos em "Pirão de Sereia"
e suas crônicas em "Siri Na Lata",
ambos publicados pela Realejo Livros e Edições.

No comments:

Post a Comment