Thursday, February 8, 2018

PERSEVERANÇA (por Marcelo Rayel Correggiari)


Buscas nem sempre são agradáveis.
Lembro-me de, há um bom tempo atrás, ter sido aconselhado a ‘escrever um livro’ por um monstro de ser humano cujo senso de julgamento sobre as coisas ao redor é tão saboroso quanto à água.
Em que pese a pessoa em questão definitivamente não gozar das perfeitas faculdades mentais (um caso bem próximo da Psiquiatria, como vários dos que encontramos todo santo-dia), ative-me bem mais ao recorrente gesto de violência (entre os vários já sofridos) inerente àquela ‘sugestão’ do que ao enunciado em si.
Prova cabal de que o conselho havia partido de alguém que nada conhece de Literatura, apesar de certos esforços em incursões nesse meio...
Porque, na Literatura, a vida de ninguém ‘dá um livro’. A vida de qualquer um, incluindo a desse merceeiro, é deveras desinteressante para se imortalizar nas linhas de um romance.
O interessante, para a Literatura, não é a vida em si: o interessante é o ‘processo’.
Todas as circunstâncias e ocorrências que levam alguém a dar um ‘basta’ e navegar por novas cartas-náuticas é o que chamaríamos de ‘o processo’. Isso “... dá um livro”! A vida em si, não. A forma como a emoção e a mente costuram novas rotas neurais bem diferentes das que haviam antes é inicialmente mais interessante do que um caminhão de descrições amontoadas num parágrafo que jamais indica ao(à) leitor(a) o que realmente há por trás da ‘cortina de fumaça’.
“... o que foi feito no último final-de-semana...”, “... o que se comeu...”, “... quem foi...”, “... quem estava lá...”, “... o carro que se dirige...”, “... o tamanho da conta bancária que se tem...”, “... a roupa que se veste...”, “... a felicidade que se tem...”, “... a festa que ocorreu...”, “... o sucesso do evento...”, “... o lugar onde se mora...”, entre tantos itens de uma lista tão profunda como um pires, são o Spinoza chamou de “conservação do estado”.
A “conservação do estado”, na Literatura, serviria somente para conduzir um(a) leitor(a) desatento(a) à ‘armação’ oportunamente promovida em algum ponto da narrativa por ardilosos personagens (isso quando nas mãos de um(a) escritor(a) “do ramo”, devemos alertar). Na vida real, a “conservação do estado” é uma armadilha onde, se a “reação” for maior do que o “ser”, a neurose (ou a psicose) se avizinha.
O custo da “conservação do estado” é altíssimo. Se a abordagem fosse somente pecuniária, ‘meno male’... Quando o preço a se pagar certamente afeta o cérebro e a mente, temos diante de nós mesmos um problema que pode se tornar bastante crônico se não observado (ou devidamente medicado) por um bom profissional dessa área.
O surgimento de muitas psicopatias em pessoas tidas como ‘normais’ pelas ruas de quase todas as cidades mundo afora é um indício bem claro que a “conservação do estado” entrou no lugar da “perseverança do ser”. A “conservação do estado” é reagente: é uma medida de proteção contra o ‘conhecimento do novo’ e que elimina por completo a capacidade do ‘pensamento primevo’ de Spinoza: o “sentir”.
O que se vê, nos dias de hoje, é essa quantidade de “tralha” na qual pessoas gastam rios caudalosos de energia em sua ‘preservação’, jogando fora itens fundamentais para a “perseverança do ser”, como o Amor e o Afeto.
A “conservação do estado” não surge à toa: é fruto de traumas originários da violência e/ou da escassez, transformando seu(ua) portador(a) como o(a) atalaia da pior espécie de tradição possível. O(A) “conservador(a) do estado” tende a migrar imagens já conhecidas e vivenciadas para conhecimentos sobre algo ‘novo’, sobre ‘a novidade’ e, consequentemente, deixa de vivenciar e/ou sentir como esse ‘novo’ pode reestabelecer a leitura de cenários já estruturados.
Quem lança mão desse tipo de expediente abdica da vida: desconhece a Arte, o Estado-da-Arte, manifestados em detalhes sutis e singelos da força interior que habita cada um de nós. É como se a própria pessoa jogasse fora sua ‘vontade de potência’, a ‘potência’ que existe na vida e é natural em todas as coisas.
Abrem-se alas, assim, para um artificialismo descabido, confinado nas representações (aparências) e quase sempre de caráter tópico. O que realmente é necessário, ou preciso, jamais é (ou será) feito. Na “conservação do estado” só se reage, nunca se é. Para o pediatra e psicanalista inglês (Donald Woods) Winnicott (7 de abril de 1896, Plymouth, Reino Unido - 25 de janeiro de 1971, Londres, Reino Unido), só haveria saúde mental quando “... o “ser” é maior que a reação”.
Pensamos que o resto da história já é, por todos(as), conhecido...
Essa mecânica, o processo, é onde repousa o interesse da Literatura, não necessariamente a linda vida que se possa ter quase sempre ilustrada pelas belas imagens como representação de uma felicidade que, de fato, se revela muitas vezes bem questionável.
Por que não se ‘persevera no ser’?! Simples: porque dói. E quem, já num mundo atribulado como o de agora, há de perder tempo e dinheiro com ‘dores & tristezas’?!
O impasse se deve ao tipo de desprendimento exigido na “perseverança do ser”: é pouco provável que o enriquecimento do espírito, da alma, o ‘primeiro pensamento’, esse, do “sentir”, ocorra sobre bases ou premissas de “luta por defender-se” que frequentemente tomam a maior parte do tempo. Não é uma questão de se estar “... aberto ao ‘novo’...”: é uma questão de “fidus” (“confiança”, em Latim, e que é etimologia para a palavras “fé”) tanto no ambiente quanto na vida. Um(a) “conservador(a) do estado” não possui essa “fé”, de fato, e passa a acreditar (no sentido de “dar crédito”) em qualquer coisa, abordagem, estilo-de-vida ou sorte de interação que se mexa bem diante dos olhos.
O princípio do ‘esgotamento’: ao ‘conservar o estado’, abdica-se de ‘perseverar no ser’ e os grandes pensamentos (esses, do sentir), como o Amor e o Afeto, vão embora, desaparecem, e são substituídos pelo que há de mais abjeto em termos de existência humana.
Uma pedra cantada: uma pessoa bem sucedida em sua profissão, financeiramente confortável, aparentemente bem resolvida e ‘super’ de bem com a vida que comete o ato extremo de interromper o próprio sopro. Parece bobagem, ou uma ideia extrema, mas não é. Há vários casos de pessoas sem o menor motivo para tal e que já não estão mais entre nós.
Deixar de ‘perseverar no ser’ pode trazer sempre o que há de pior para perto. Um tormento. E extremamente funcional na produção de monstros cujo o ‘conselho-máximo’ acaba por se tornar: “... escreva um livro!”. O verdadeiro atentado contra a vida.

Marcelo Rayel Correggiari
nasceu em Santos há 48 anos
e vive na mítica Vila Belmiro.
Formado em Letras,
leciona Inglês para sobreviver,
mas vive mesmo é de escrever e traduzir.
É avesso a hermetismos
e herméticos em geral,
e escreve semanalmente em
LEVA UM CASAQUINHO



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