Um coração vivo pulsa em grande plano e ouvimos o Stabat Mater de Franz Schubert. Haverá forma mais in your víscera de começar um filme? Ou melhor, de nos sinalizar que o que se seguirá é um filme do peito e que irá tocar o mais íntimo, o mais profundo de cada um de nós? Momento de pausa para pensar: é um filme do grego Yorgos Lanthimos, o que significa que, para desgosto das comadres cassavetianas, nas próximas duas horas, com muita probabilidade, se iria trocar a singularidade das personagens pela bizarria das situações. Quereis ver então, caro espectador, que nos primeiros segundos de “O Sacrifício do Cervo Sagrado” (2017) já podíamos dizer com quase toda a certeza que iríamos caminhar pelo filme a quatro patas, feitos sagrados cervos?
Bom,
a resposta a esta questão é… não sei. A câmara vai recuar e nós vamos ver uma
operação real ao coração que serve para nos ambientarmos com o trabalho do
nosso protagonista, o cirurgião cardíaco, Steven Murphy (Colin Farrell). Ao
longo de todo o filme vão elogiar muito as magníficas mãos do médico, mãos que
poderão dar a vida ou dar a morte. Se todo o filme é sobre isso, sobre a mão
vingadora e a mão reparadora, não há como não pensar logo naquela imagem
famosíssima que Walter Benjamin utilizou em “A obra de arte na época da sua
possibilidade de reprodução técnica”, acerca da distinção entre a magia e a
cirurgia. Enquanto o primeiro mantinha uma certa distância para curar (uma
certa autoritas), o segundo penetrava a fundo no organismo, fazendo depender
essa salvação de uma proximidade brutal com a coisa em si. Benjamin queria
falar dessa forma diversa de abordar o mundo proporcionada pelas distâncias e
planos gerais da pintura, por contraponto com o close up da víscera, a
capacidade do aparelho cinematográfico cortar nas entranhas do real.
E
talvez esteja aqui a originalidade do cinema de Yorgos Lanthimos: a oscilação
entre um cineasta-cirurgião e um cineasta-anestesista.
Se
é verdade que vamos entrar a fundo no quotidiano (e na catástrofe) do nosso
cirurgião – ao contrário do filme anterior, “A Lagosta” (2015), aqui um homem
bem casado (Nicole Kidman), e com dois filhos fofíssimos -, não podemos dizer
que Lanthimos siga a ideia benjaminiana do cinema como penetrador do real. Pelo
contrário, todo o suspense clínico do filme se vai instalando em planos muito
abertos e afastados dos personagens – salas e corredores muitas vezes vistas de
cima, redomas intermináveis. A dada altura, falando-se da possibilidade de
Steven ter cometido um erro fatal com um paciente, este responde que não são os
cirurgiões que matam, mas sim os anestesistas. E se há palavra para descrever
todo este thriller trágico, absurdo, bíblico, é a anestesia. Os personagens
parecem incapazes do choro ou de foder a não ser simulando uma anestesia geral
sobre o leito. As cenas de quarto entre Farrell e Kidman lembram um “De Olhos
Bem Fechados” (1999) em que o fumo dos charros e o sexo fetichista tivessem
sido substituídos por uma cortina de anti-naturalismo que vai anestesiando,
primeiro a expressividade dos actores, depois o corpo das personagens e,
finalmente, o próprio espectador.
A
música em acordes dissonantes vai manchando o ordinário dos diálogos sobre
vestidinhos pretos e presilhas de relógios de pulso, preparando a caminha da
bizarria que se abaterá sobre as personagens. O filme parece caminhar lento
para o abismo, cortando, cirurgicamente, todos os traços do humor negro que os
filmes anteriores do cineasta grego ainda tinham. Colin Farrell é aqui bem o
mensageiro dessa anestesia de um corpo e de uma emoção, todas as palavras
proferidas com uma frieza que antecipa, algures, o desastre. Se bem se
recordam, na cena final de Lobster, Farrel já entrava nesse modo, esperando o
espectador que este cegasse como Édipo. Aqui, os actos sacrificiais trágicos
continuam, tendo o próprio título sido recuperado no final da tragédia,
“Ifigénia em Áulide” de Eurípedes. Mas no desfecho das tragédias, a empatia com
as dores do protagonista contra o mundo malsão sempre foi característica chave.
Que é feito dessa empatia na obra de Lanthimos? Tudo se vai tecendo,
normalmente, com a complexidade sem explicação do destino cruel e resta-nos
descodificar o puzzle vertido em metáfora de um absurdo da vida. Pouco resta
para a lágrima da emoção, para investigar os affaires dos coração.
E
talvez esteja aqui nesse conflito, a originalidade do cinema de Yorgos
Lanthimos: a oscilação entre um cineasta-cirurgião e um cineasta-anestesista. O
primeiro quer entrar, abrir o coração como quem desmonta um relógio para ver
como funciona, fazer funcionar a catarse da tragédia e mover a roda
hitchcokiana (duas outras personagens que escondi propositadamente, uma mãe e
um filho, evocam a família Bates). O segundo tudo enxerga ao longe, cínico e
laboratorial, com esse propósito de adormecer hanekianamente o real, até que ao
espectador lhe cedam as pernas, subitamente, inexplicavelmente. Até já não
sentir nada.
Contudo,
como esse veado fugidio que só se deixa ver no fundo furtivo de alguns planos
de “O Sacrifício do Cervo Sagrado”, aqui a mensagem parece saltar para o
arrière-plan, ficando nós a braços com o peso de umas mãos. Umas mãos de
cirurgião que, como os antigos imperadores, podiam fazer viver ou podiam fazer
morrer.
O SACRIFÍCIO DO CERVO SAGRADO
(The Killing Of A Sacred Deer, 2017, 121 minutos)
Crítica excelente! Parabéns.
ReplyDeleteAna Valéria