Desde ano passado, essa cansada Mercearia já tem avisado que só anda a ler os clássicos.
Exceto uma releitura de “CBA”, do ‘Maneco’ Herzog, e “As Piedosas”, do argentino Federico Andahazi, a ‘vida loka’ de nossa clientela não nos deixou alternativa que não fosse a (re)visitação de gente que veio ao mundo para dar o seu certeiríssimo ‘plá’.
Para essa véspera de sexta, ora, ora, ora... muito atrevimento de ‘merceeiro’ “à toa na vida” com uma cartilha (aquela passagem obrigatória que todos precisariam fazer na profunda compreensão do ‘merdelê’ todo) para o enfrentamento das quimeras da ‘mudernidade’.
Afinal, todos querem ser “descolados”... “modernex”... aquela gente que se empapuçou de se medicar com o elixir da vida contemporânea, o “Fodex” (“Tomei “Fodex”, mudou minha vida!”), mas são poucos os que puseram a ‘mão na massa’.
Como o movimento dessa Mercearia anda meio fraco por causa da crise, sobrou tempo...
A cartilha de hoje responde pelo nome de “O Mal-Estar na Cultura”, de Sigmund Freud (nascido Sigismund Schlomo Freud, em 6 de maio de 1856, em Příbor, República Checa - 23 de setembro de 1939, em Hampstead, Reino Unido). Tal obra também pode ser encontrada pela tradução mais popular de seu título, “O Mal-Estar na Civilização” (que não sabemos porque, cargas-d’água, a palavra ‘Kultur’ do título original “Das Unbehagen in der Kultur” acabou parando em português como ‘civilização’).
Enfim, mistérios linguísticos da humanidade...
A desvantagem de não saber de patavinas da área proposta pelo conjunto de ensaios do renomado psicanalista certamente traduzir-se-á na quantidade de orelhadas que o corrente comentário pode reservar.
Freud é o elo que liga dois outros grandes nomes da Economia Política, Karl Marx (5 de maio de 1818, Tréveris, Renânia-Palatinado, Prússia, Confederação Germânica – 14 de março de 1883, Londres, Reino Unido) e John Maynard Keynes (5 de junho de 1883, Cambridge, Inglaterra, Reino Unido – 21 de abril de 1946, Tilton, East Essex, Inglaterra, Reino Unido). Os três foram, de longe, os que melhor ‘sacaram’ nessa tal Economia Política que havia muito mais afetividade e psicologia do que as regulações numéricas representadas em equações.
Mesmo sendo aluno de Alfred Marshall (um dos primeiros a separar a Economia da Política), muito do observado por Keynes tem influência quase que direta dos estudos de Freud. Apesar do grande esforço para não se bicar com o mestre, JMK não conseguiu evitar os aspectos emocionais para certas ‘tomadas de decisão’ observadas ao longo de suas “Teorias Gerais”.
Acreditamos que é impossível pensar Freud sem sua natural associação a Baruch Espinoza (24 de novembro de 1632, Amsterdã, Países Baixos – 21 de fevereiro de 1677, Haia, Países Baixos) ou, pelo menos, uma considerável influência do observado pelo filósofo holandês, em especial no “Tratado da Correção do Intelecto”.
Uma outra faceta presente em “O Mal-Estar...” são os consideráveis sinais de que Freud teria igualmente se influenciado pelo método científico em (Karl) Marx, onde o objeto ‘ordena’ os rumos de uma pesquisa. Ainda que o ‘sujeito’ (a subjetividade) precise de constante enriquecimento, a contemplação do ‘objeto’, sua historicidade e diferentes ganhos de densidade ao final de certos ciclos são os elementos que determinam a marcha das imprescindíveis revisitações para um melhor estabelecimento do que foi estudado.
Publicado 10 anos depois de uma de suas principais obras, o “Além do Princípio do Prazer”, “O Mal-Estar na Cultura” (ou “... Civilização”) contém elaborações bem mais precisas e estudadas em torno das ‘pulsões’ onde podem ser justamente verificadas as bem acabadas conclusões nos ganhos de densidade de certos objetos observados por Freud. “O Mal-Estar...” é a decantação do apreendido pelo psicanalista ao longo de sua brilhante carreira, mas já sem grandes esperanças de que alguma de suas obras apresentasse um êxito à altura do tamanho da trombada anunciada.
Boa parte dos estudos mais históricos e antropológicos de Freud recaem sobre uma premissa de que “... o que vale para o indivíduo (ontogênese) também vale para a espécie (filogênese)”. Por esse ponto de partida, verificou o renomado psicanalista que amplas representações introduzidas pela Cultura (ou Civilização) seriam, em algum grau, uma forma de “escapar” de dores oriundas de limitações e/ou frustrações quase sempre de caráter libidinoso.
Apesar de seu ataque inicial em direção às religiões, em “O Mal-Estar na Cultura” não escapam sequer a Ciência e as Artes como potentes na produção de sublimações que quase sempre operam como fontes alternativas de compensação diante dos eventuais riscos naturais para certas obtenções de ganho naturalmente encontrados se a civilização não incutisse a necessidade de elaboração para um progresso que, lá adiante, acaba meio que jogando contra.
Um dos problemas de Freud, meses antes de sua morte, foi o de pessoalmente se deparar com inúmeros impasses já apontados por ele, especialmente em seus derradeiros estudos. A riqueza de “O Mal-Estar na Cultura” está exatamente nessa porosidade, no aviso antecipado por ele de que certas conjunturas (apreciações ou conjecturas) estão ativas, em movimento... ainda há água a passar por debaixo da ponte, os dados ainda giram sobre o aveludado pano vermelho.
O velho Freud, pelo menos, nunca se intimidou com as sinucas-de-bico nas quais se enfiava, como na boa e clássica constatação: “(...) Por um lado, o amor se opõe aos interesses da cultura; por outro, esta ameaça o amor com sensíveis limitações. (...)”.
Sem a Cultura, as forças interiores do Homem, tidas como destruidoras quando incontroláveis, poriam tudo a perder. Com ela, os sistemas de sublimação impedem qualquer um(a) de descartar potenciais fontes de desequilíbrio. No que permite à essa conturbada Mercearia alguma graça da hermenêutica, “... se correr, o bicho pega. Se ficar, ...”.
Se vai querer entender um pouquinho da tal vida ‘mudérna’, leitura obrigatória. Para os religiosos, artistas e cientistas, seria bom passar longe: ‘dá ruim’ legal. Ideal após a leitura do “Tratado da Correção do Intelecto”, de Espinoza, mas, se não ser tempo, tudo bem. Uma coisa é certa: o ‘mundinho’ show de bola que esmeramos em construir com nossa covardia, deslealdade e pataquadas, nem Freud explica.
“O Mal-Estar na Cultura”
de Sigmund Freud (1930)
Editora L&PM Pocket
2ª edição revisada, Porto Alegre, 2016
188 páginas
Tradução do alemão de Renato Zwick
Revisão técnica e prefácio de Márcio Seligmann-Silva
Ensaio biobibliográfico de Paulo Endo e Edson Souza
Preço médio de R$ 23,00
Marcelo Rayel Correggiari
nasceu em Santos há 48 anos
e vive na mítica Vila Belmiro.
Formado em Letras,
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