Wednesday, June 21, 2017

O COMUNISTA QUE BEIJOU MACHADO DE ASSIS (uma bofetada do passado de Sérgio Augusto)

publicado originalmente no Estadão
em 6 de Outubro de 2001
e republicado a pretexto do aniversário
de 178 anos de nascimento
de Machado de Assis nesta quinta,
21 de Junho de 1839


Em 1964, a casa de nº 11 da rua do Bispo, no Rio Comprido, bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro, foi invadida e saqueada pela polícia. Ali morava um perigoso subversivo chamado Astrojildo Pereira Duarte Silva, de 74 anos e armado de livros até o teto. De quê o acusavam? De haver conspirado para derrubar o governo. Não o que acabara de derrubar João Goulart, mas o que nos governara cinco décadas antes, quando aquele pacato senhor tinha apenas 28 anos e fazia parte de um grupo anarquista, liderado pelo professor José Oiticica. A prisão de Astrojildo Pereira mobilizou jornalistas, escritores e artistas, todos preocupados com o seu coração, avariado, meses antes, por um enfarte. Já estávamos em 1965 quando outro enfarte, daquela vez fatal, desfalcou as hostes comunistas de seu mais respeitável crítico literário. Seu enterro, coroado com um discurso de Otto Maria Carpeaux, foi num cemitério de Niterói—a mesma cidade de onde, 56 anos antes, Astrojildo saíra do anonimato para a história da literatura.

28 de setembro de 1908. Um jovem de quase 18 anos pega a barca da Cantareira rumo à Praça XV, do outro lado da baía de Guanabara. Nem seus pais sabiam que ele pretendia visitar Machado de Assis no leito de morte. Tenso, Astrojildo bateu à porta do casarão do Cosme Velho, identificou-se apenas como “um grande admirador do escritor” e implorou para que o deixassem entrar e ver o mestre de perto. Em vigília na sala de estar, Euclides da Cunha, Coelho Neto, José Veríssimo, Raimundo Corrêa, Graça Aranha e Rodrigo Otávio manifestaram-se contra a entrada do rapaz desconhecido. Acordado pelo burburinho, Machado permitiu que Astrojildo entrasse em seu quarto, ajoelhasse ao lado da cama e lhe beijasse a mão, partindo logo depois sem se identificar. O escritor morreria na madrugada seguinte.

“Naquele meio segundo em que ele estreitou o peito moribundo de Machado de Assis, aquele menino foi o maior homem de sua terra”, escreveu Euclides da Cunha, num célebre artigo intitulado “A última visita”, publicado no Jornal do Commercio, dois dias depois da morte do escritor. “Qualquer que seja o destino desta criança”, vaticinou, “ela nunca mais subirá tanto na vida”. Durante quase 30 anos Astrojildo moitou sobre a identidade da “última visita” de Machado, afinal revelada por Lúcia Miguel Pereira em 1936. Àquela altura, ele já era um nome bem conhecido, junto às esquerdas principalmente. Fazia então quatro anos que o Partido Comunista o afastara de seus quadros, por considerá-lo um “intelectual pequeno-burguês” e “oportunista”. Além do mais, prestista. Foi por seu intermédio que o tenente Luís Carlos Prestes, exilado na Bolívia, teve acesso aos primeiros clássicos do marxismo-leninismo.

Três paixões Astrojildo teve na vida. As duas maiores, por ordem de entrada em cena, foram Machado (a quem dedicou, em 1959, um precioso estudo sociológico, reeditado pela Oficina de Livros de Belo Horizonte) e o comunismo. A terceira, marcante mas passageira, foi Ruy Barbosa. Para o rapazola de Rio Bonito que acompanhava de Niterói a cosmopolitização do Rio, Machado e Ruy eram os dois símbolos máximos da modernização da velha capital, seu ponto de encontro com o nacional e o internacional, o fascínio e o desencanto, a elegância e a brutalidade, a utopia republicana e a luta de classes, a vida literária e as festas populares, “tudo em contraditória tensão, sem a qual não se pode compreender a origem do revolucionário”, para usar as palavras de Martin Cesar Feijó em O Revolucionário Cordial, biografia intelectual e política de Astrojildo que Boitempo Editorial veio a lançar.

Feijó já escrevera, na década de 80, um ensaio sobre a formação política de Astrojildo, agora expandido e aprofundado nessa obra francamente empenhada em caracterizar o mestre informal de Prestes como um sujeito de boa alma, afável, honesto e tolerante, utilizando-se da terminologia consagrada por Sergio Buarque de Holanda, que aliás conheceu Astrojildo em 1929, em Berlim. Para sua surpresa, em vez de um “bolchevique inflexível”, encontrou “um homem refinado e de excelente formação literária”. Intelectuais tão díspares quanto Carpeaux, Gilberto Freyre, Oswald de Andrade e Antonio Candido passaram pela mesma surpresa. Até o ferrenho anticomunista Nelson Rodrigues reverenciava a figura e a opinião de Astrojildo.

Autodidata desde a adolescência, o “revolucionário cordial” nem concluiu o curso ginasial. Como tantos jovens da sua geração, foi civilista, anarquista, e antes mesmo de desviar para o comunismo, em 1921, já não via com bons olhos o Águia de Haia. Quando este morreu, em 1923, foi todo ironia: “O proletariado não perdeu nada com isso, antes pelo contrário”. Mas a Machado e ao comunismo permaneceu fiel a vida inteira.

Um dos fundadores do PC, em 1922, Astrojildo visitou a Rússia soviética em 1924 (encantou-se com os funerais de Lenin, a força do rublo e a quantidade de livrarias em Moscou), fundou A Classe Operária, a mais duradoura publicação do partido, mas não escapou ao furacão obreirista que, a partir de setembro de 1929, começou a devastar os PCs da América Latina. Patrulhado pelos artigos que vez por outra enviava para publicações consideradas “burguesas”, como a Revista Nova (que tinha Mario de Andrade em seu quadro de colaboradores), “pequeno-burguesas”, como O Homem do Povo (editada por Oswald de Andrade e Pagu), e “fascistas”, como O Tempo (de Miguel Costa), e até por sua amizade com Di Cavalcanti, seu companheiro de pensão, Astrojildo viu-se forçado a ser revolucionário à sua moda, sem se curvar aos ditames partidários e ao dogmatismo estético dos marxistas de meia-tigela . “Os camaradas devem saber que disciplina não significa aviltamento”, declarou para quem quisesse ouvir e enfiar a carapuça.

Seu afastamento do Partidão livrou-o de qualquer envolvimento com a insana revolta de 1935, vulgarmente conhecida como Intentona Comunista. Como não conseguia viver exclusivamente dos ensaios que produzia para a imprensa dita burguesa, dedicou-se, por uns tempos, ao comércio de frutas, na capital paulista, onde morou até o fim da guerra. Voltaria ao PC em 1945, quando se candidatou, sem sucesso, à Câmara dos Vereadores. Seus principais cabos eleitorais, Carpeaux e Graciliano Ramos, tinham muitas virtudes, mas eram duas nulidades em matéria de marketing político.

Astrojildo publicara recentemente seu primeiro livro de ensaios literários, Interpretações, com uma fina análise das obras de Machado e três outros fundamentais romancistas do Rio: Manuel Antônio de Almeida, Joaquim Manuel de Macedo e Lima Barreto. Um comunista com a intransigência ideológica de um Octávio Brandão, por exemplo, jamais reconheceria no autor de A Moreninha um “intérprete autorizado dos nossos sentimentos”, “um cronista meticuloso e fidedigno de nossa vida social nos meados do século XIX”, como fez Astrojildo. A comparação com o mais importante teórico marxista dos primórdios do PC foi intencional. Rival e desafeto de Astrojildo, Brandão não perdia uma oportunidade de desqualificá-lo como “pequeno-burguês liberal e confusionista”, “anarquista exasperado e desesperado”, e coisas piores. Qualquer dúvida, basta consultar Combates e Batalhas: Memórias, editado em 1978 pela Alfa-Ômega.

Brandão, cuja postura crítica teria horrorizado o próprio Karl Marx, que se deliciava com a ficção de Walter Scott, Balzac e Eugène Sue, abominava Machado de Assis, contra quem investiu com fúria desmedida e a tradicional miopia analítica dos zumbis ideológicos. Para ele, Machado “deveria ter continuado e desenvolvido o romantismo heróico de Castro Alves”. Assim, seus livros, “grosseiros”, “decadentes”, “comodistas”, talvez deixassem de ser “enfadonhos”, “criações equivocadas” de um espírito “burguês”, “retrógrado” e “niilista”. Quando sua diatribe O Niilista Machado de Assis (Organização Simões Editora, 206 págs.) chegou às livrarias, em 1958, Carpeaux não deixou pedra sobre pedra, culminando por compará-la àquilo que os pássaros costumam despejar sobre as estátuas.

Dênis de Moraes já nos dera conta da difícil convivência de Astrojildo e outros com o sectarismo de certos membros do Partidão, em O Imaginário Vigiado (José Olympio, 1995), sobretudo no auge do stalinismo. Feijó amplia o quadro, descendo a minúcias que só antigos integrantes do PC ou experts em Astrojildo, como José Paulo Netto, Leandro Konder e Heitor Ferreira Lima, talvez conheçam. Nos seus últimos 19 anos de vida e atividade partidária, a “última visita” de Machado de Assis limitou-se, praticamente, a participar de eventos culturais, palestras, organizar publicações e escrever artigos. Acabara de lançar, pela Civilização Brasileira, uma coletânea de ensaios, Crítica Impura (Autores e Problemas), e editava a revista cultural Estudos Sociais, quando os militares deram o golpe em 1964. Segundo Feijó, Astrojildo “morreu convencido de que o partido sempre acertava, até quando errava”, pois acreditava que “era melhor errar coletivamente do que acertar individualmente”.

Cordial, sim, herético, jamais. Tanto que silenciou sobre os expurgos stalinistas e relativizou a intrínseca mediocridade do realismo socialista, admitindo sua validade “quando aplicada acertadamente, sem interferir na liberdade de criação”. Ou seja, também errou individualmente. Mas, como dizia o Boca Larga, ninguém é perfeito.





Sérgio Augusto (Rio de Janeiro, 1942)
é um jornalista e escritor brasileiro.
Começou sua carreira como crítico de cinema
na Tribuna da Imprensa, em 1960.
Trabalhou também no Correio da Manhã,
no Jornal do Brasil, na Folha,
e nas revistas O Cruzeiro,
Fatos & Fotos, Veja, IstoÉ e Bravo!,
além dos semanários O Pasquim, Opinião e Bundas.
Desde 1996, ele escreve para o Estadão.




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