Wednesday, June 7, 2017

EM RESENHAS AO LÉU, A VOLTA DE RUBEM FONSECA COM UM NOVO LIVRO DE CONTOS QUE É UM VERDADEIRO SOCO NO ESTÔMAGO


por Chico Marques


É comum ver escritores de renome atingirem idades avançadas e pararem de se dedicar a livros longos e ambiciosos. A certeza de não ter muito tempo de vida pela frente vira um pesadelo para qualquer escritor muito maduro envolvido num projeto mais extenso. Para citar dois exemplos bem conhecidos, tanto Saul Bellow quanto Philip Roth driblaram deadlines apertados escrevendo apenas contos e "novellas" (romances curtos) por vários anos antes de se aposentarem. Com isso, atendiam bem seus editores, satisfaziam seus fãs e mantinham suas contas bancárias bastante saudáveis.

Aqui no Brasil temos dois grandes escritores nascidos em 1925 -- com mais de 90 anos de idade -- que permanecem em plena atividade: Dalton Trevisan e Rubem Fonseca. Durante décadas, tanto um quanto raramente passou um ano sem entregar a seus editores uma nova coletânea de contos, ou -- no caso específico de Rubem Fonseca -- um eventual romance. E tanto um quanto o outro conseguiu, cada um à sua maneira, reinventar o formato dentro da literatura brasileira urbana, dando a ele uma relevância artística até então inexistente. Enquanto Trevisan mergulhava de cabeça no que sua querida Curitiba tinha de menos cosmopolita e mais provinciana, Rubem conseguia vislumbrar com clareza nos Anos 60 e 70 o inferno urbano em que o Rio de Janeiro iria se transformar dos Anos 80 em diante.

Dalton Trevisan anda bem sossegado. Publicou "O Anão e a Ninfeta" em 2011, depois "O Beijo Na Nuca" em 2014, e de lá para cá parece ter reduzido drasticamente seu volume de produção. Já Rubem Fonseca é incansável. Renegocia com frequência todo o seu catálogo com novas editoras, e a cada dois anos coloca um título novo no mercado que surpreende principalmente pela maneira intensa com que permanece antenado com o mundo que o cerca e com as mudanças constantes que são impostas ao nosso cotidiano, muitas vezes sem nos darmos conta disso.   


O trabalho de Rubem Fonseca é um marco para várias gerações de ficcionistas brasileiros. Até os anos 1960, nossa cultura literária era dominada por regionalismos, mas desde então nota-se cada vez mais a predominância de uma literatura urbana que desnuda as metrópoles e suas patologias típicas. Rubem foi o escritor que transpôs essa nova realidade para a literatura, mudando a maneira como o gênero policial era encarado na nossa literatura e dando um novo status ao gênero.

"Calibre 22" é seu mais recente lançamento pela Editora Nova Fronteira. O título não poderia ser mais adequado. Na maioria das 31 narrativas estão presentes tanto a obsessão de matar por motivos fúteis ou densos como também os próprios assassinatos, sempre cometidos com armas de fogo. Em meio a tudo isso, ele exercita sua linguagem ágil, sucinta e cinematográfica, com cortes secos primorosos, humor negro e muita ironia -- características que o consagraram como um mestre absoluto no gênero, extremamente influente para os escritores das gerações seguintes.

Um exemplo curioso disso: uma das criaturas que habitam os contos de "Calibre 22" declara, com uma desfaçatez surpreendente, ter “um interesse muito especial pela morte dos seres vivos em geral”. Que outro escritor brasileiro seria capaz de colocar uma frase dessas na boca de um de seus personagens?


O cenário das histórias do mineiro de nascimento Rubem Fonseca é sempre o Rio de Janeiro. Não o Rio dos posters espalhados por Agências de Turismo do mundo inteiro. O habitat de seus personagens é uma cidade cada vez mais cruel, com encantos duvidosos, perigosa ao extremo e habitada por seres marginalizados: prostitutas, anões, matadores de aluguel, empregadas domésticas, idosos, macumbeiras, vendedores ambulantes... Rubem mergulha de cabeça no universo e no inferno particular de cada um deles, revelando idiossincrasias extremamente divertidas que acabam por humanizar essas criaturas até então invisíveis aos olhos da literatura urbana brasileira.

Por mais que alguns reclamem que seus novos contos não tem a força e a intensidade artística de sua produção dos Anos 60 e 70, eu não consigo ver em sua produção atual uma degradação da carpintaria literária que o tornou célebre. Na minha maneira de ver, Rubem Fonseca é hoje um escritor muito diferente do que era 50 anos atrás. Cada vez mais ele dispensa sutilezas. Sua prosa está cada vez mais cruel e desenfreada. Claro que o apuro técnico de sua escrita permanece no mesmo nível extremamente elevado de antes. O que mudou foi o tom das ironias, que hoje flertam abertamente com o deboche e o escárnio, incomodando alguns admiradores de longa data. É como se seus dedos estivessem "sem papas na língua" sempre que em contato com as teclas de seu computador de uns dez anos para cá.

Detalhe: dos 30 contos que compõem "Calibre 22", 5 deles tem como personagem o cínico e sagaz advogado criminalista dublê de detetive Mandrake contracenando com o que a cidade do Rio de Janeiro tem de mais louco e selvagem, e mostrando claramente onde e como o bas-fond e o universo das elites se encontram. É uma delícia reencontrar o bom e (não tão) velho detetive mulherengo, amante de charutos e vinhos, aparentemente distraído e meio atrapalhado, mas dono de uma esperteza que sempre entra em cena no momento certo. Aqui, em "Calibre 22", ele investiga uma série de assassinatos envolvendo o editor de uma revista feminina de sucesso, entre outros casos mais ligeiros. Um grande personagem.


Convenhamos: poucos escritores tiveram em vida o reconhecimento de crítica e público que Rubem Fonseca teve. Há mais de 50 anos, suas tramas expõem tanto o universo do crime quanto o mundo das altas esferas do poder político. Conseguiu ser best-seller sem precisar sacrificar a qualidade de sua literatura, em dezenas de volumes de contos e romances bastante festejados. E viu vários de seus títulos virarem filmes de sucesso, como "A Grande Arte", "Bufo & Spalanzani" e 'O Homem Do Ano", além da minissérie  "Agosto" da TV Globo e a série da HBO "Mandrake", com Marcos Palmeira e Luís Carlos Mièle.

Há ainda hoje os que defendem a tese de que Rubem não funciona como romancista, apesar de ser talvez nosso maior contista em todos os tempos. Eu discordo disso em parte. Seus romances às vezes possuem passagens prolixas demais, em contraponto com passagens extremamente ágeis logo na sequência. Sem contar que Rubem tem o hábito de recheá-los com pesquisas detalhadas sobre vários assuntos correlatos à trama para conseguir atingir o número de páginas necessário para caracterizar um romance -- claro que sem permitir que isso prejudique o ritmo conciso da narrativa. Isso se repete de maneiras curiosas em praticamente todos os seus romances. Em "Vastas Emoções...", por exemplo, Rubem chega ao extremo de sumir com o personagem principal durante mais de 30 páginas, e ficar tratando de vários outros assuntos até que o personagem finalmente reapareça.

Não adianta: não existe mais o Rubem Fonseca de coleções de contos implacáveis como "O Cobrador (1979) e Feliz Ano Novo (1975), que profetizaram a violência banalizada da nossa realidade cotidiana atual. O Rubem Fonseca de hoje não é um visionário como era antes, apenas trafega pelo universo temático consumado que ele vem amparando tão bem em sua ficção ao longo de todos esses anos. Hoje, os horrores que ele descreve são outros. Vão desde a deterioração das relações humanas e o oportunismo generalizado na exploração da ignorância alheia, até a insolência de um escritor que debocha de seus editores e de seus leitores por acharem seu trabalho genial.

Assim é Rubem Fonseca aos 92 anos de idade. Mais azucrinado do que nunca. E aí... vai encarar?

CALIBRE 22
Rubem Fonseca
(Editora Nova Fronteira)
201 páginas
R$23,90 (Saraiva)
R$39,90 (Livraria Cultura)



Chico Marques devora livros
desde que se conhece por gente.
Estudou Literatura Inglesa
na Universidade de Brasília
e leu com muito prazer
uma quantidade considerável
de volumes da espetacular
Biblioteca da UnB.
Vive em Santos SP, onde,
entre outros afazeres,
edita a revista cultural
LEVA UM CASAQUINHO


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