Friday, June 16, 2017

VISITANDO GERALDO, LEVANDO MOACYR (uma crônica de Marcus Vinícius Batista)



Quando o músico e fotógrafo Cid Marcos me convidou para visitar o Parque Ecológico Voturuá, em São Vicente, pensei no Museu dos Escravos (desde janeiro do ano passado, se chama Casa de Cultura Afro-brasileira, mas me permita usar o nome antigo, por afetividade). O lugar abrigou um dos mais simbólicos restaurantes da região, com culinária nacional, centrada nos alimentos da matriz africana e indígena.

Da última vez que estive lá, comi tutu de feijão, baião de dois, mandioca frita, fora o cheiro de feijoada que ocupava o ambiente. O restaurante ficava dentro de uma casa com telhado cru e paredes que remetem ao período colonial, com os batentes das janelas de madeira, com meia dúzia de centímetros de espessura.

Museu e restaurante eram o casamento ideal para preservação da cultura, numa cidade que sempre teve, ao longo dos séculos, dificuldades para conservar sua história. A primeira vila onde os políticos desfiam suas mentiras no slogan-falácia de "primeira cidade do Brasil", enquanto deixam o mato crescer no porto da naus ou inventam rotas fluviais que jamais saíram do papel.

Na primeira volta pelo Horto - também nome antigo do parque -, não tive tempo de me decepcionar com o museu fechado. Meu grupo queria rodar pelo lugar e fotografar o leão e as leoas, o hipopótamo Ramón, os macacos e as aves.

Na segunda volta, uma hora e meia depois, o museu estava aberto. Na porta, um senhor agradável recepcionava os visitantes. A dois metros dele, uma carranca o auxiliava a afastar os maus espíritos, afugentava o olho gordo que não para de piscar em tempo de eleição. A carranca reacendeu o desejo de ter uma parecida na porta de casa.

Sabia que o restaurante estava fechado. Tinha a curiosidade de rever o museu; na prática, seria como a primeira vez depois de uma década, inclusive pela renovação do acervo. Um canto simples, num imóvel histórico e belo, a evidência física de que São Vicente não precisa de megalomania para expor suas origens. Basta decência política.


O museu mantém hoje dezenas de esculturas de Geraldo Albertini, quase todas negras, na cor e na forma, para marcar as diversas facetas da escravidão, seja nos papéis sociais, seja nos ofícios cotidianos da Casa Grande e da lavoura.

Geraldo Albertini nasceu em Capivari, região de Campinas, em 1933. Morreu em São Vicente, quase na virada do século, aos 66 anos, em 1999. Começou a esculpir em meados da década de 50, quando trabalhava em usina de açúcar. Suas obras estão acompanhadas de trabalhos de dois aprendizes, Irineu Beck e Ademir dos Santos.

  Geraldo, artista que o museu não permite esfarelar pelo tempo dos brancos, não viajou o mundo, mas suas esculturas o representaram em países como África do Sul, Alemanha, Argentina, Estados Unidos, França, Itália, Inglaterra e Portugal.

No canto esquerdo, logo na entrada, um baú guardava uns 30 livros. É um projeto de troca de obras literárias e estímulo à leitura. Como livros têm poder magnético, revirei o baú. Na arqueologia de preciosidades, coloquei debaixo do braço "O Imaginário Cotidiano", do falecido médico gaúcho Moacyr Scliar.


O livro reúne uma série de crônicas que Scliar escreveu para o jornal Folha de S.Paulo, sempre às segundas-feiras. As crônicas obedeciam uma regra única: tomar como base uma notícia curiosa.

De uns dias pra cá, devoro uma ou duas crônicas ao dia, em doses homeopáticas, geralmente antes de dormir. Para justificar à volta ao Museu dos Escravos, para realizar o sonho de ver o restaurante reaberto, prometo cumprir o acordo com o baú: retirou um livro, deposite outro.

Quem sabe o mesmo livro, a ser saboreado numa mesa, com os cheiros de uma feijoada ou de um baião de dois?

(publicado originalmente em CONVERSAS E DISTRAÇÕES em 9 de Agosto de 2016)

 
Marcus Vinícius Batista
é o cronista santista número um, ponto.
É autor de "Quando Os Mudos Conversam"
Realejo Livros)
coletânea de crônicas escritas
entre 2007 e 2015
e mantém uma coluna semanal
no Boqueirão News
que é aguardada com avidez
por sua legião de leitores.
Atendendo a um pedido
de LEVA UM CASAQUINHO,
ele se dispôs a resgatar
algumas de suas crônicas favoritas
escritas nos últimos anos
para republicação no BAÚ DO MARCÃO.



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