Sunday, March 6, 2016

ANA, MARIA HELENA

um conto de Márcio Calafiori


Esquisito, quando acordei hoje demorei a perceber onde estava. Sinto-me um pouco tonto. O apartamento tem três quartos grandes, mas o nosso ambiente é este, a sala. A televisão está ligada no canal de desenhos. O vento suave do ventilador de teto refresca a samambaia posicionada no ângulo próximo à janela. Os raios de sol atravessam a planta. Pela intensidade da luz consigo captar a aproximação do outono. Gosto da tonalidade dessa estação. Poucos notam isso, a alternância discreta do cinza-claro para o cinza brilhante e frio. A única época do ano que detesto é o verão, pois me incomoda. Tenho uma alergia nas costas que se manifesta com o calor intenso. É um local chato pra coçar.

Ana acabou de acordar. Está sob o efeito da mesma inquietação que tive. Daqui a pouco ela melhora. Agora, estou no banheiro que deveria ser o da empregada. Não gosto desse banheiro. O social é reservado para as visitas. Ao passar pela cozinha, a caminho do quarto principal, me dá vontade urinar de novo. Será a idade? Antes eu urinava uma vez ao levantar. Ultimamente, não. Sinto a bexiga pressionada. O problema é que não consigo fazer logo em seguida. Dou um passeio pela casa e alguma coisa dentro de mim se desprende e flutua. Então volto ao banheiro, e alivio o resto. Tem sido assim.

Maria Helena não está. Saiu quando Ana e eu estávamos dormindo... Não, não! Na verdade, ela saiu sexta-feira de manhã, depois do café. Deixou a nossa refeição preparada e disse que retornaria logo.

Na sala, Ana permanece meio aérea.

“O que foi?”, pergunto.

“Estou com a boca seca, o coração disparado e um pouco cansada, igual àquela vez em que voltei da clínica.”

“Eu também acordei me sentindo um pouco mal, mas já estou melhor.”

“Você lembra a hora em que fomos dormir?” 

“Depois do almoço, por quê?”

“Não acha estranho?”

“O quê?”

“Ora, a gente dormir depois do almoço!”

“Estranho por quê?”

“Por acaso a gente tem o hábito de dormir após as refeições?”

“Tenho visto você cochilar.”

“Isso é bem típico da sua implicância! Eu só dormi duas ou três ou vezes depois de comer. E isso foi no inverno do ano passado. E tudo por causa daquela chuva chata, que durou quase uma semana.”

“Querida, você tem cochilado. Às vezes, até mesmo no meio de uma conversa você cochila.”

“Mentira!”

“Você também tem cochilado ao assistir os desenhos.”

“Só quando repetem algum. E nem sempre, pois gosto de rever.”

“Tá bom...”

“Não seja compassivo!”

De repente tenho um estalo:

“Será que nós acordamos só hoje?”

“Pode explicar a dúvida?”

“Não sei... Demorei a perceber onde estava quando acordei, como se eu tivesse dormido mais que o necessário.”

“Eu também tive a mesma sensação, mas não quis te falar, pois achei que ia ficar agitado. Os vizinhos reclamam quando você se agita.”

“Ana, você se tornou ressentida. Por acaso está insinuando que sou neurastênico?”

“E eu cochilo?”

Maria Helena é solteira. Herdou este apartamento do irmão, que também era solteiro. Ela fica dias sem sair de casa, lendo na poltrona. Recebe poucas ligações, mas quando as recebe não fica menos de uma hora ao telefone. Quando sai é pra comprar alguma coisa. Mas às vezes some sem avisar. Não existe nela nenhum traço de beleza antiga. Não sou filósofo, mas é fácil perceber que ela abriu mão de algumas coisas na vida pra não se machucar.

“Você não sentiu um gosto na comida?”, Ana pergunta.

“Hein?...”

“Não acha que o sabor da comida estava diferente?”

“Se estivesse diferente eu não comeria.”

“Você tá velho. Velhos comem qualquer coisa.”

Barulho na fechadura. Finalmente.

“Olá!... Lucas!... Ana!... Quero um beijo... O quê?... Sentiram a minha falta?”

“Maria Helena! Você disse que ia voltar logo”, exclamei.

“Não se divertiram na minha ausência?”

“Com o quê?”, reclamou Ana.

“Ora, Ana, e o Lucas? Ah, já sei, o Lucas só gosta da mamãe.”

“Lucas, volta aqui!”, Ana me chama.

“Vem, meu queridinho”, insiste Maria Helena, me atiçando.

Fico no meio do caminho, entre as duas, indeciso.

“Lucas, se você for nunca mais vai dormir ao meu lado, nunca mais”, Ana ameaça.

“Ah, não querem conversar? Lucas, a Ana fez a tua cabeça, não? Confessa pra mamãe, confessa. Deixa essa boba.”

“Lucas, se você for...”, Ana me ameaça, de novo.

“O que foi? Não querem vir conversar com a mamãe? Já sei, querem que eu me explique. Pois bem, eu viajei com uma amiga. Foram só três dias e meio em Campos do Jordão. Que delícia! Dormiram bem com o sonífero?”

Ana e eu agora estamos chocados:

“Sonífero?”, dissemos ao mesmo tempo.

“Isso foi ideia do médico, caso contrário, na minha ausência, vocês iriam ficar agitados!”

“Quem fica agitado é o Lucas, não eu”, retrucou Ana.

É a mais pura verdade. Uma vez fui deixado só em casa. Quando a luz cinza da tarde começou a esmaecer, fiquei tenso. Maria Helena e Ana jamais haviam se atrasado tanto. A solidão inesperada me abalou.

“Ah, mas agora me deixem chegar... Depois vamos passear? Topam?”

Vingativa, Ana defecou bem no meio da calçada. Maria Helena fez que não viu.


Márcio Calafiori é jornalista. 
Nasceu em 1957 e se formou 
pela Facos em 1986. 
Exerceu quase todos os cargos 
em redações de jornais em Santos, 
Santo André, Campinas e São Paulo. 
Foi redator, repórter, revisor, editor, 
secretário de redação, 
chefe de reportagem e ombudsman. 
Aposentou-se em 2012 
como professor da Unisanta, 
depois de 29 anos 
de dedicação exclusiva 
ao Jornalismo Impresso.
Márcio faz participações
especiais eventuais
em LEVA UM CASAQUINHO.




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