Wednesday, March 2, 2016

NO ANIVERSÁRIO DE 451 ANOS DO RIO DE JANEIRO, FAÇA UMA VISITA À GAFIEIRA ELITE

por Carlão Bittencourt


1980. O Rio de Janeiro inteiro sacode ao ritmo das danceterias da moda. Nas filas de entrada, quilométricas, os anônimos disputam espaço com os famosos. No braço. Ou quase. Os porteiros, arrogantes, agem como imperadores da noite. Polegar para cima, ou para baixo, eles decidem quem entra, ou não. Veja você ao que chegamos.

Enquanto isso, na gafieira segue o baile calmamente. Do outro lado da Cidade Maravilhosa, mais exatamente no Centro, tudo vai bem. Nada de pressa, de gritaria ou de empurrões. Estamos na Praça da República. Na Elite.

A mais tradicional das gafieiras cariocas, a Elite não faz concessões. E nunca foi chegada a mudanças. Pelo contrário. Sempre resistiu às modernidades. Talvez esse seja o segredo de sua longevidade.

Com mais de sessenta anos de bons serviços prestados à boêmia carioca, a famosa gafieira se esmera em exigir um certo tipo de comportamento. Um estilo elegante que parece condenado a desaparecer com o tempo. Infelizmente. A casa é rígida. Inflexível. Tem regras claras de educação, os chamados estatutos da gafieira. É bom respeitá-los. Porque quem balançar o corpo vai pra mão do delegado. Mesmo.

Como já dissemos a Elite não quer saber modismos. Aqui tudo parece impregnado de eternidade. A começar pelos garçons. O mais novo deles, o mascote da casa, deve estar beirando os cinqüenta anos. Por baixo. A decoração é absolutamente original. Os músicos são os melhores dos melhores. Quase todos solistas da noite, para dizer o mínimo. A cozinha também não desafina. É sublime. A bebida é honesta, inclusive no preço. As mesas são distribuídas por dois andares. No mezanino, onde fica a orquestra e em baixo, no mesmo plano da pista de danças. Que, aliás, é um espetáculo à parte.



A pista de dança da Elite é tão perfeita, que nos remete à grama da quadra central de Wimbledon. Ou, se você preferir, aos jardins do Palácio de Versailles. Ou, ainda, às incríveis mesas de sinuca da marca norte-americana Brunswick. Lisa. Magnífica. Incomparável. Um enorme mosaico feito de madeiras de cores diferentes. Uma nobre passarela por onde desfilam os pares de freqüentadores da casa. Flanando.

Esses bailarinos são, como sugere o nome da casa, a elite. A alma do lugar.

Imagine o impossível. Ou quase. Reunir a nata das velhas-guardas de todas as escolas de samba do Rio de Janeiro, no mesmo lugar.

Seja bem-vindo à passarela da Elite. Neste paraíso, quando a orquestra ataca uma seleção de sambas, mambos, tangos ou boleros, entram em cena o que o Brasil tem de melhor. Os príncipes e princesas do nosso povo. Majestosos.

Elegância é a primeira palavra que nos ocorre. Outra é encantamento. São muitos casais se exibindo. Isso mesmo, se exibindo. Porque dançar desta maneira, com tanto talento e desenvoltura, é mais do que dançar. É uma forma quase obscena de exibição. Um desrespeito ao dois pra lá, dois pra cá, dos simples mortais. Um desacato.

Seria como se Delegado e Gigi, a famosa dupla de mestre-sala e porta-bandeira da Estação Primeira de Mangueira, tivessem se multiplicado em muitos pares. Quanta habilidade!

Diante deles, a inveja é perdoável. Absolvida. Deixa de ser pecado. Porque concluímos que todos nós deveríamos saber dançar assim. Se estivessem presentes Fred Astaire e Ginger Rogers, com certeza ficariam sentados. Para não perder a pose. E a aura. A dança é uma arte. A Elite confirma isso. Todas as noites.

Mas, afinal, que voz é essa? De onde veio esse timbre tão firme? E essa maneira tão gostosa de cantar um velho samba-canção do grande Lupicínio Rodrigues? Parece o Jamelão. Tem o estilo do Jamelão. É o Jamelão. Em carne, osso e elásticos nas mãos. Eis o velho crooner, sussurrando em nossos ouvidos uma das maravilhosas canções de dor de cotovelo do seu repertório. Mas segure as lágrimas. Olha a imagem, meu chapa! Você tem um nome a zelar.

Agora a voz de Jamelão se projeta desde a orquestra e ocupa todos os espaços da Elite. A voz é límpida, cristalina, pura. Como uma gota de orvalho. E seu efeito é imediato. Fulminante. Os casais que não estão dançando, trocam olhares, entrelaçam as mãos, fazem juras eternas. E os que estão na pista, roçam ainda mais as pernas, os corpos colados. Jamelão está cantando e o amor está no ar.



Numa das mesas do mezanino, um pequeno grupo em particular merece registro. São três pessoas. Um casal de cariocas e um amigo santista, em visita ao Rio de Janeiro.

O rapaz é de fora, mas não destoa em nada de qualquer outro freqüentador da antológica gafieira. Seja no vestir, seja no falar. Seja na postura. Respeitosa.

Aquele jovem está em casa. É habitué das pistas de dança mais tradicionais de sua cidade. Freqüenta os bailes do Nacional e da Sociedade Humanitária, aos sábados, e as domingueiras do Clube Sírio Libanês. Sabe tudo e mais um pouco do riscado.

No entanto, hoje ele não vai arriscar sequer entrar na pista. Nada disso. Como se tivessem combinado antes, os três apenas assistem. E registram o que vêem. Instantaneamente. Na retina. Na memória. No coração. Porque eles sabem que estão em solo sagrado. Sabem que aquele chão já foi pisado pelos melhores entre os mais nobres ancestrais da boêmia carioca. Sabem que sobre os tacos de madeira curtida, antiga e bem cuidada da Elite, muitos caminhos se cruzaram, pé sobre pé, na interminável dança do tempo.

Noel Rosa, Aracy de Almeida, Mário Reis, Carlos Cachaça, Mário Lago, Braguinha, Orlando Silva, Cartola, Geraldo Pereira, Ismael Silva, João da Baiana, Sinhô, Pixinguinha, Heitor dos Prazeres, Silvio Caldas, Moreira da Silva, Nelson Cavaquinho, Francisco Alves, Ari Barroso, Lamartine Babo, Cyro Monteiro, Madame Satã e outras lendas.

É possível vê-los (e ouvi-los) em todo seu esplendor. Basta firmar a vista. Soltar a imaginação. A emoção. Eles estão entre nós. E sorriem orgulhosos da lenda que ajudaram a construir. E a consolidar.

É por isso que o santista não vai dançar. Ele sabe exatamente onde está. E sente que sua mesa, lá no alto do mezanino, mais parece uma varanda no céu. Lugar mágico, privilegiado, de onde se pode vislumbrar toda a pista de dança em sua real dimensão. Santuário.

Elite.

É noite de sábado e tudo vai indo bem na última fortaleza legítima da noite carioca. Aqui nossa música e nossa gente se encontram em perfeita comunhão. E resistem. Bravamente.

Ainda.


(Conheça AQUI o website da Gafieira Elite) 




Carlão Bittencourt é redator publicitário e cronista,
autor de "Pela Sete - Breves Histórias do Pano Verde"
(2003, Editora Codex),
um mergulho no universo dos salões de bilhar de São Paulo,
e escreve toda semana em LEVA UM CASAQUINHO.


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