Tuesday, March 8, 2016

GOIABINHA E SANSÃO

por Carlão Bittencourt



Entraram no famoso Salão Maravilhoso sem fazer alarde. Como se conseguissem passar despercebidos. Dois anões! Assim, quietos, chegaram e permaneceram enquanto jogavam sinuca. Mudos. Carrancudos. Sorumbáticos. E dá-lhe jogo.

Apesar de velhos freqüentadores da casa, a cena sempre chamava a atenção. Todas as vezes. Pelo bizarro, lógico. Afinal, a dupla era ainda mais baixa do que a mesa. Então, eles eram obrigados a improvisar. E, para isso, usavam de um expediente muito criativo: punham uma caixa de cerveja vazia virada ao contrário ao lado da mesa e subiam nela para jogar. Era perfeito. E ridículo.

O inusitado dava na vista. Não havia quem entrasse no salão que não olhasse, pelo menos uma vez, para a mesa três, onde eles sempre jogavam.

Quem visse aqueles estranhos parceiros se pegando, ferozmente, como dois mini gladiadores do pano verde, pensaria que ali tinha jogo apostado. E alto. Tamanha era a rivalidade que demonstravam.

Mas aquela sanha tinha outra explicação. Aquela era a partida final de uma série melhor de cinco, até então rigorosamente empatada em dois a dois. E naquilo que estava em jogo não se podia botar preço. Nem valor.

O que se tentava decidir ali, tacada por tacada, bola por bola, partida por partida, era por demais precioso. Tanto para Goiabinha, como para Sansão.

Para eles, o que estava em disputa era sagrado. Uma guerra santa. Uma cruzada pessoal. Portanto, valia mais do que dinheiro. Mais do que fama. Mais do que aplausos. Mais do que a vida nômade e agitada que levavam no Gran Circo Magirus onde, há anos, eles se apresentavam em dupla. E com imenso sucesso.

A treta ali era outra. Quizumba velha. Uma rivalidade nascida no picadeiro, entre o “respeitável público” e os números, os camarins e os traillers, entre os trapézios e as redes de proteção, entre as estacas e a serragem, entre as belas e as feras. Era uma rixa antiga que precisava ter fim. E teria.

Na verdade, naquela noite fria de uma quarta-feira vadia do início dos anos 70, no Salão Maravilhoso, em plena esquina das avenidas Ipiranga com São João, centro de São Paulo, o que Goiabinha e Sansão disputavam era a própria sorte. Taco a taco.

Pois o prêmio daquela partida de sinuca era Verônica, “a mulher mais gorda do mundo”, segundo o cartaz do circo. E o que se via ali era verdadeiro duelo de amor. Vá entender.


Mas vamos voltar à mesa três. Naquele ringue de três metros e meio de comprimento por um e trinta e cinco de largura, coberto por um feltro verde já bastante combalido, a temperatura estava alta. Demais.

Ninguém queria perder. De jeito nenhum. Então, cada bola era jogada como se fosse a última e decisiva do jogo. Que seguro morreu de velho. E gozando de perfeita saúde.

Quase uma hora havia se passado e a última e decisiva partida ainda estava pela bola três. Ou seja, até aquele momento apenas duas bolas tinham ido para as caçapas. Goiabinha matou a um e Sansão, a dois. Assim, o placar apontava um ponto de vantagem para Sansão.

Subitamente, porém, Sansão deu um vacilo. Jogou a bola três e, apesar do capricho, não matou a verdinha. Caprichosamente, a bola bateu no bico e parou na boca. O silêncio no Maravilhoso era absoluto. A mesa estava aberta, escancarada. Até mesmo uma criança seria capaz de trancar aquela partida. Quanto mais Goiabinha que, apesar de anão, jogava como gente grande.

Não deu outra. As bolas começaram a ir para as caçapas. Uma por uma. E a cada bola que sumia da mesa, uma lágrima surgia no rosto feioso de Sansão. Até que Goiabinha se preparou para jogar a seis. Se ela caísse, adeus viola: a partida estaria encerrada. E o jogo ganho.

Empuleirado na caixa de cervejas, o anão estudou a jogada. Depois, passou giz no taco. Mas não deu a tacada final, definitiva. A amizade falou mais alto.

Calmamente, Goiabinha colocou o taco sobre a mesa e propôs empate técnico ao adversário. Sansão tirou as mãos do rosto enorme, desproporcional, enxugou as lágrimas e se abraçou ao parceiro.

Agora, estava decidida a porfia. De uma vez por todas. Goiabinha e Sansão, para sempre iriam dividir entre si o grande amor de suas vidas. E continuariam escalando aquela alva, doce e querida montanha de carnes e banhas muito brancas. O primeiro, às segundas, quartas e sextas. O segundo, às terças, quintas e sábados. Domingo seria dia de folga. Estripulias, só no picadeiro.

Do alto dos seus duzentos e muitos quilos, Verônica, “a mulher mais gorda do mundo”, agradeceu.




Carlão Bittencourt é redator publicitário e cronista,
autor de "Pela Sete - Breves Histórias do Pano Verde"
(2003, Editora Codex),
um mergulho no universo dos salões de bilhar de São Paulo,
e escreve toda semana em LEVA UM CASAQUINHO.


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