Tuesday, March 15, 2016

JOGA NA CHAPA!

por Carlão Bittencourt


O nome do cara era Miguel, mas todo mundo o chamava de Miguel Rouco. Inevitável. Com uma voz que soava como a de um pato sendo esganado, ou empalado vivo, o apelido pegou. E ficou.

Mas não é disso que vamos falar. O tema deste texto é outro. Diferente. Porém, tão engraçado quanto a voz de Miguelzinho.

O foco desta historia é a paixão do dito Rouco pelo jogo. Ou, melhor dizendo, a loucura em que ele transformou a sua vida por causa do jogo. Vamos lá.

Para começar, vamos descrever o homem.

Moreno, com um tipo físico meio para o goiano, 1,70 m de altura, magro, Miguel teria, no máximo, 28 de idade em meados dos anos 70. Era Diretor de Arte. Dos bons. Portanto, ganhava bem. Assim, mantinha sua família com um padrão de vida dos melhores.

Outra característica sua era ser agitado, no limite do quase nervoso. O que, no trabalho, até que funcionava. Afinal, estava sempre ligado, elétrico.

Por isso, era um profissional respeitado. E requisitado. Mudava de agencia de propaganda com extrema facilidade, pois vivia recebendo boas propostas. Resultado: seu salário era um dos mais altos da criação.

Ganhando bem e com status, Miguel deitava e rolava na direção de arte. E, com o passar dos anos, foi se especializando em promoção, uma área até então considerada “menor”.

O fato e que o Rouco acabou se tornando fera no setor. E passou a ganhar os tubos. Daí, para que a sua queda pelo jogo crescesse foi um tiro. Que saiu pela culatra, como veremos adiante.

Inicialmente, Miguel cultivava o hábito de jogar no bicho. De manhã e de tarde. Todo santo dia.

Pouco tempo depois, resolveu aderir também à Loteria Federal. E, para azar seu, ganhou. Comprou uma fração da borboleta 13 que deu na cabeça. Não parou mais.

Sua visita diária à Loteria era cercada de pompa e circunstancia. O dono da lotérica, claro, o tratava como um lorde. Tanto que passou a reservar bilhetes inteiros ao Miguel, avisando por telefone que o burro já estava guardado para ele. Honesto seria dizer que o burro era ele.

Em seis meses, Miguel acertou duas vezes a centena no bicho e outras três na Federal. O ganho foi pequeno, mas para ele aquilo foi um sinal divino de que a “grande tacada” estava próxima.

Compulsivo, Miguel não se deu conta de que havia adquirido um vicio. Caro. Assim, o homem literalmente não podia mais ver um numero. Qualquer numero. Anotava na hora. Passou a andar com uma caderneta de notas no bolso. Desta maneira, onde quer que estivesse, dava de cara com um palpite, quase sempre infeliz.

Entrava num prédio, anotava o numero. Pegava um táxi, anotava a chapa. Passava em frente a um aviário, anotava os números do peru para jogar mais tarde. A coisa foi ficando cada vez mais séria.

Em casa, ninguém sabia de nada. Dona Encrenca, a patroinha, nem sequer imaginava como a cabeça do Rouco estava atrapalhada. E se soubesse que ele tinha jogado meio salário do mês no bicho, em cima do numero 0910, data do casamento deles, teria ficado maluca. Ainda mais maluca do que o Miguel.

Por mais algum tempo a coisa continuou na mesma batida perigosa: Miguel apostando em todos os números “bonitos” que cruzavam seu caminho, e a Rádio Patroa no escuro, até que o inevitável aconteceu.

Seguinte. Com tantas apostas, feitas em pontos de bicho e lotéricas diferentes da cidade, Miguel esqueceu de honrar alguns pagamentos. Não havia dolo. Nada disso. É que simplesmente o cara tinha pirado. De vez.

Bicheiro é bicho matreiro. Paga e não admite calote. Resultado: numa calma manhã de quinta-feira o telefone tocou na casa de Miguel Rouco. Era um apontador, cobrando uma dívida.

No breu, totalmente por fora dos fatos, a patroa bem que tentou argumentar que aquilo era engano. Tinha que ser. Disse que Miguel era um marido, pai e chefe de família exemplar. Um publicitário bem sucedido, premiadíssimo. O apontador ouviu e, sem dó, lascou uma verdade zoológica no ouvido da pobre mulher:

"Dona, eu conheço o seu marido... Ele não trabalha na McCann? Não mora no Cambuci? Não tem conta no Bradesco? Pois, então, é ele mesmo: o Miguel Rouco. Aposta comigo tem mais de ano... O cara é fanático pelo burro!"

Gaguejando, a mulher do Rouco perguntou quanto o marido devia. A resposta fez com que ela caísse da cadeira. Literalmente. Não havia mais dúvida: Miguel tinha perdido o juízo


 O ambiente estava carregado na sala. Tenso, pesado. Após alguns minutos de um silêncio alarmante, o irmão mais velho quebrou a inércia.

"Pra mim o caso é sério... acho que temos que internar o Miguel."

Ninguém se opôs. Nem as três irmãs, nem os cunhados, nem abatida mulher, nem o casal de filhos. Muito menos o melhor amigo do homem, Joca, que, antes, preferiu coçar a orelha atrás de uma pulga mais atrevida.

Por uma questão de hierarquia, ficou combinado que João, o mano mais velho iria falar com ele. E foi. Mas não deu certo. Miguel riu dos argumentos do outro. Disse que não tinha nada de errado com ele. Por último, tirou uma caderneta do bolso e calmamente perguntou ao irmão:

"Janjão, você é do 28 de julho de 1952, não é?"

Ao que o outro respondeu, estarrecido:

"Sou. Por que?"

Com um sorriso pendurado no rosto, Miguel respondeu, com a certeza inabalável dos loucos:

"Leão, rei dos animais!"


Amanhecia no Cambuci, naquele sábado ensolarado. Eram 6 horas da manhã. Os enfermeiros entraram sorrateiramente no quarto do casal. Miguelzinho dormia como um anjo. E certamente sonhava com burros, cobras e outros bichos.

Os quatro enfermeiros eram enormes, mais pareciam leões de chácara. Com a seringa na mão, o médico ordenou:

"Agora!"

E aplicou o calmante. O efeito foi imediato. Tonto, com sua coordenação motora abalada, Miguel não ofereceu resistência nem quando percebeu que tinham vestido uma camisa de força nele.

Conduzido praticamente no ar, com os pés em pantufas mal tocando o chão, Miguelzinho viu a ambulância estacionada na frente de sua casa e, num raro momento de lucidez, compreendeu tudo.

Antes que as portas do veículo se fechassem em sua cara, Miguel Rouco, num esforço sobre humano, conseguiu torcer o pescoço para trás, olhar para sua mulher, que chorava, amparada pelos filhos, parentes e vizinhos, e gritar a plenos pulmões:

"Joga na chapa, Cidoca, joga na chapa!"     


CARLÃO BITTENCOURT 15.03.2016




Carlão Bittencourt é redator publicitário e cronista,
autor de "Pela Sete - Breves Histórias do Pano Verde"
(2003, Editora Codex),
um mergulho no universo dos salões de bilhar de São Paulo,
e escreve toda semana em LEVA UM CASAQUINHO.



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