Thursday, March 31, 2016

CAFÉ E BOM DIA #18 (por Carlos Eduardo Brizolinha)




Alguém neste mundo que traga um só cromossomo de Molière. Alguém que exista para demolir o pedantismo, esse corredor de esnobismo e encenar "As Preciosas Ridículas".

Alguém que morra na esquina encenando "O Doente Imaginário".

Alguém que detenha conhecimento dos tipos e caráter humano e gesticule narrando fracassos.

Alguém que pesquise no lago da memória com o fio do próprio pensamento.

Alguém que arremesse para a outra margem o ranço azedo da intolerância.

Alguém que seja comédia debaixo da chuva. Molière tem realidade cômica sem óculos, lunetas.

Alguém que apele à inteligência. Olímpica e fria inteligência.

Alguém no palco como Alceste em "O Misantropo", um homem reto cujo desgosto para com as loucuras, afetações e corrupção chega às raias da obsessão. O mundo social que adeja à sua volta é uma coleção de almofadinhas, bajuladores, intrigantes e namoradores. Julga impossível conviver com eles, ainda que seu leal amigo Philinte lhe aconselhe cautela. O ponto fraco em sua couraça é o amor que por uma mulher incuravelmente flertadora, à qual -– como acontecia com o próprio Molière -– ama em oposição ao que lhe faz o melhor discernimento. Mas a despeito da paixão que sente por ela, não consegue violentar-se a ponto de aceitar o mundo de intriga que é o habitat natural da moça. Perseguir a integridade sem levar em consideração as realidades sociais e exigir o impossível de uma mulher superficial só podiam conduzir a um desastre pessoal. A sociedade, como ele a descreve, não pode ser reformada porque o gênero humano é fundamentalmente corrupto.

Alguém que tenha direito pleno de pensar o mundo segundo seu humor.


O parisiense Jean Genet (1910-1986) teve uma das vidas mais controversas no mundo das letras e das artes cênicas no século XX. Uma existência marcada pela coragem em se expor ao tratar de temas polêmicos, como a sua confessada homossexualidade.

Escritor, poeta e dramaturgo, filho de uma prostituta e pai desconhecido, o que é apontado como uma influência marcante em sua conduta e sua obra libertária. Cresceu como filho adotado de um casal da região rural de Morvan, na Borgonha, mas não conseguiu se adaptar às regras de uma educação convencional francesa e caiu na delinquência.

Genet passou a juventude em reformatórios e prisões, época em que afirmou sua orientação sexual. Aos 18 anos, entrou para a temida Legião Estrangeira, famosa pelo rigor em preparar soldados e colocar na linha tipos rebeldes como ele a partir de métodos terríveis de disciplina.

Não funcionou, claro. Em pouco tempo, foi oficialmente expulso por desonra, após ter sido flagrado fazendo sexo com um recruta.

Passou a se dedicar à escrita, mas sem se afastar de confusões. Ao mesmo tempo em que esboçava seus primeiros escritos e concluia peças que se tornariam importantes, como “O Balcão”, “Os Negros” e “Os Biombos”, estabeleceu para si a má reputação de alguém que só atraía escândalos e se envolvia em roubos e brigas.

Mesmo assim, ao longo da vida, Genet se tornou amigo de importantes personalidades de seu tempo:, como os filósofos Jacques Derrida (1930-2004) e Michel Foucault (1926-1984), os escritores Juan Goytisolo (1931) e Alberto Moravia (1907-1990), os compositores Igor Stravinski (1882-1971) e Pierre Boulez (1925), o diretor de teatro Roger Blin (1907-1984), os pintores Leonor Fini (1907-1986) e Christian Bérard (1902-1949). Nomes cujo convívio reforçou a certeza de sua importância como autor.

Entre os seus primeiros trabalhos estavam dois romances de títulos um tanto quanto pudicos, mas carregados de ironia: “Nossa Senhora das Flores” e “O Milagre da Rosa”, que chamaram de imediato a atenção de Jean Cocteau (1889-1963).

Mas foi graças ao filósofo e escritor Jean Paul Sartre (1905-1980) que “Nossa Senhora das Flores” ficou famoso.

Para ele, trata-se de uma das três grandes obras “medievais” do século XX, ao lado de Ulisses, de James Joyce (1882-1941), e de “Duas Existências”, do dramaturgo Jean Girandoux (1882-1944).

Relendo "O Balcão" com uma xícara de café ao lado e desejando a todos um bom dia.


Carlos Eduardo "Brizolinha" Motta
é poeta e proprietário
da banca de livros usados
mais charmosa da cidade de Santos,
situada na Rua Bahia sem número,
quase esquina com Mal. Deodoro,
ao lado do EMPÓRIO SAÚDE HOMEOFÓRMULA,
onde bebe vários cafés orgânicos por dia,
e da loja de equipamentos de áudio ORLANDO,
do amigo Orlando Valência.


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