Thursday, March 31, 2016

NO PAÍS DAS CALÇAS CÁQUIS (por Marcelo Rayel Correggiari)




Num período razoavelmente turbulento da vida nacional, permeado inclusive mundo afora por uma grave crise humana, há de se entender que a noção de justiça ao longo da história universal pode ser simplesmente uma ilusão.

Quando um padrão se repete, é necessário muito sangue-frio para saber com certa exatidão qual a porcentagem de contribuição nossa no ‘merdelê’ todo. Já aviso que nunca é uma tarefa fácil ou suave. Auto-crítica para a transformação é um artigo cujo preço é salgado pacas.

Porque não pára na ‘auto-crítica’. Precisa-se de muita coragem para cessar o funcionamento daquilo que não funciona bem.

Num momento em que certo ‘macartismo’ impera com ‘listinhas’ para lá e para cá na presença de um policiamento deveras beligerante, em que a virulência de agora é proporcional ao estímulo agressivo de outrora, há de se pensar que estivemos sempre no superficial e aquilo que precisaríamos fazer não foi feito.

Doze entre dez estudantes de ciências jurídicas preferem feijão... e Hans Kelsen! O ‘queridinho’ das dissertações e TCCs país afora responde pela autoria de ‘A Ilusão da Justiça’, obra que pouco conheço e domino bem mal.

Nessa grande obra de 1963, já perto do final do livro, em passagem interpretativa sobre o diálogo de Sócrates com Críton, Kelsen dispara: “(...) Isso significa que as leis, a ordem jurídica positiva, é o Estado; e a obrigatoriedade dessa ordem – isto é, a autoridade do Estado – não pode ser questionada pela atitude de um indivíduo que, sujeito a ela, ponha em dúvida a justiça dessa ordem em sua totalidade, ou que conteste uma norma em particular. Aqui fica claro que a exigência do direito natural de que o direito positivo seja justo é paralisada por outra exigência, mandando que o sujeito se submeta ao direito, ainda que o tome por injusto. Esse é o método característico de que se vale toda doutrina conservadora do direito natural para manter o direito positivo, a despeito de um direito natural que não lhe é idêntico. (...)”.

Em que pese certa obviedade do comentário, muito devido ao prisma platônico presente em partes da obra supracitada, tal trecho me faz lembrar uma fala do, então, secretário de segurança pública do Rio de Janeiro, o delegado Hélio Luz, para o documentário “Notícias de uma Guerra Particular” (recomendo!) em maio de 1997: “(...) Então, esse homem vai ‘pra’ cadeia. Essas teorias funcionam numa sociedade justa. Aí é que ‘tá’... o cara tem porquê voltar, porquê reingressar. Quer dizer, ele vai sair de uma sociedade injusta, vai pra cadeia, vai reingressar numa sociedade injusta?! Só se ele for idiota! Ele vai continuar fazendo o que ele fez! Ele vai se aperfeiçoar. (...) “Deu azar...”, vai puxar a cadeia dele. Aí, entende... vai fazer o quê?! Vai ressocializar ‘pro’ sistema injusto?! “Agora, você ‘tá’ de parabéns! Pelo bom comportamento, você pode ser injustiçado! (risos). Vai participar disso aqui: você fica com a menor parte, ou sem parte nenhuma...”. (...) É ridículo isso. (...)”.

E quando toda essa parafernália chega aos gabinetes, ao trânsito de ‘bureau’ (burocracia), a barbárie da lei, além de consumir muito tempo e dinheiro, pode facilmente destruir vidas e reputações.


Esse é o pano-de-fundo do documentário “Sem Pena” (Brasil, 2014), do diretor Eugênio Puppo. Nele são inseridos relatos de prisões arbitrárias, corrupção policial, entre outras reflexões sobre os pesados sistemas judiciário e penitenciário brasileiros, entes fundamentais nas execuções penais do país.

O filme apresenta uma proposta interessante (porém, longe de algum ineditismo) que são sequências de imagens acompanhando os depoimentos em ‘off’, ou seja, em nenhum momento os rostos dos depoentes do documentário aparecem na tela.

Apoiadas numa fotografia equilibrada, com tomadas estanques e frequentemente exibindo pessoas do pescoço para baixo (não há rostos em boa parte do filme), as sequências emolduram os relatos presentes no documentário. Somente as vozes dos participantes auxiliam no desenvolvimento da teoria presente na obra. E cada depoente introduz um ponto de vista diferente de todo sistema penal, tornando o filme ágil nas reflexões sobre uma máquina cujo funcionamento revela seu lado mais brutal para quem não consegue arcar com o preço de uma boa assessoria jurídica.

O sistema judiciário brasileiro, no que se refere à eficiência operacional do dia-a-dia, é uma fonte quase inesgotável de ‘brincar’ com a vida (e os destinos) das pessoas. Uma espécie de loteria. No caso do(a) condenado(a) não nascer em berço rico, é simplesmente contar com a sorte. O filme possui uma linha de condução dos relatos dos participantes que começa na arbitrariedade das forças policiais até a constatação de uma crise humana que alimenta o Judiciário na eliminação do ‘diferente’, do contraditório e/ou da diversidade.

E acreditem... a Justiça, além de uma ilusão, tem uma excelente visão para cores: em especial, as do dinheiro.

O único momento do filme em que rostos são exibidos é o trecho de uma audiência para instrução de processo criminal por tráfico de drogas de uma senhora moradora de um tipo de cortiço. Uma operação policial desastrada que erroneamente flagrou a mulher por porte de entorpecente encontrado no quarto ao lado.

Pelo fato do documentário exibir sequências um tanto extensas durante os relatos em ‘off’ (somente a voz dos(as) participantes e suas narrativas), a platéia pode considerar a obra um tanto pesada e até mesmo indigesta. É o preço de uma proposta que flerta com algum grau de ousadia ao apresentar um formato diferente para essa modalidade de cinema (assunto já tratado nessa modesta Mercearia). Apesar do risco, foi uma escolha feliz, e que certamente vale ser conferida pelo(a) querido(a) freguês(a).

Em tempos espinhosos de policiamento rasteiro, de muito ‘dedo-na-cara’, dentro de um cenário a um passo da intolerância e polarização no lugar de ponderações mais equilibradas diante de um quadro de crise política provocada por gente cujo expediente vai do nocivo ao inconveniente, “Sem Pena” é passagem obrigatória para se entender que, de repente, a Justiça sempre pode guardar surpresas humanamente desagradáveis.

A Justiça, quase que por via de regra, pode estar atenta aos mínimos detalhes e levá-los excessivamente em consideração na execução das penalidades. A Justiça tudo enxerga: especialmente a posição de poder e status financeiro de um(a) indiciado(a) na hora de executar uma pena ou ponderar sua melhoria ao avaliar as possibilidades de progressão. Às vezes, a Justiça tudo contempla, menos a própria Justiça.


SEM PENA
(Brasil/2014)
89 minutos
Produtora: Heco Produções
Data de lançamento: 02 de outubro de 2014
Diretor: Eugênio Puppo
Produtor Executivo: Eugênio Puppo
Produtor Assistente: Eduardo Liron
Fotografia: Jorge Maia
Edição: Eugênio Puppo
Gerente de Produção: Matheus Sundfeld

Assista SEM PENA no link abaixo  




Marcelo Rayel Correggiari
nasceu em Santos há 47 anos
e vive na mítica Vila Belmiro.
Formado em Letras,
leciona Inglês para sobreviver,
mas vive mesmo é de escrever e traduzir.
É avesso a hermetismos
e herméticos em geral,
e escreve semanalmente em
LEVA UM CASAQUINHO


No comments:

Post a Comment