Thursday, August 10, 2017

A MAIS BELA MULHER (uma crônica de Ademir Demarchi)



As mulheres estão escravizadas pelos ditames da cultura contemporânea, que combina narcisismo e consumo com culto à superficialidade. São condenadas a se olharem ao espelho à procura de alguém parecida, por exemplo, com os traços esguios, os belos cabelos de lisas ondulações perfeitas, o sorriso, o charme de Giseles Bündchens. O espelho não mente e não é uma outra dimensão borgiana por onde se possa entrar.

Ao se olharem e encontrarem uma “outra”, mesmo que com todas as qualidades, que recusam por não ser a idealizada, ganham seu bilhete para o inferno diário das seguidas trocas de roupas, estica-e-puxas, pinturas, penteados, tinturas, cremes, perfumes, e sabe-se lá mais o que andam inventando para tapar esse buraco sem fundo preenchido por coisas das quais paradoxalmente se tornaram apêndices – às quais se somam, é claro, quando há um homem por perto, seguidas perguntas de “está bom assim?” ou “fiquei bem?”

O sintoma disso está presente nas ruas, no crescente e já exorbitante número de salões de beleza por todos os lugares – já há mais deles que bares, onde se desopila, ou farmácias, onde se encontraria um calmante para essa metafísica agônica. O que mais impressiona é que elas entram nesses lugares e saem com o penteado daquela personagem disneyana, a bruxa Madame Min: um cabelo esfiapado e alisado, que se tenta domar a todo custo para ficar liso segundo a onda desta época que também as tem enfiado em calças de cintura baixa, números abaixo do seu manequim, expondo de forma indiscreta o corpo, muitas vezes em dobras... esvaziando-o de sensualidade.

O fato é que não se abrem salões de beleza interior e se alguém o fizesse talvez encontrasse muito ócio para melhorar sua própria beleza interior lendo enquanto os fregueses não vêm, talvez nunca viessem como naquele já clássico poema de Kaváfis, “À espera dos bárbaros”.

Por isso, a mais bela mulher é uma personagem de romance, que existe apenas para quem lê – e não se trata aqui da tola Capitu (de Dom Casmurro, de Machado de Assis) ou da volúvel Emma (de Madame Bovary, de Flaubert), mas sim de Sheherazade, a notável narradora das Mil e uma noites. Beleza e sensualidade lhe eram próprias, mas acessórias, pois o que mais predominou nela foi a imaginação, logo transformada em narrativa e sedutora, que salvou o reino em que morava do ímpeto de um rei (assassino e machista, diríamos hoje) que matava a cada manhã (com a licença de sua cultura) a mulher com a qual noivara à noite, de forma que ela não o traísse. Sheherazade passou a ser, assim, um símbolo da mulher inteligente, culta e sensual que, com sua imaginação fabulatória, tendo o que dizer mais que mostrar, encantou e seduziu um homem transformando-o e transformando a si própria numa espécie de rainha para todos os homens.

[publicado originalmente em 20/11/2008]




Ademir Demarchi é santista de Maringá, no Paraná,
onde nasceu em 7 de Abril de 1960.
Além de poeta, cronista e tradutor,
é editor da prestigiada revista BABEL.
Possui diversos livros publicados.
Seus poemas estão reunidos em "Pirão de Sereia"
e suas crônicas em "Siri Na Lata",
ambos publicados pela Realejo Livros e Edições.
(basta clicar nos nomes para ser enviado
ao website da editora)

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