Wednesday, August 2, 2017

COMPRANDO E PENSANDO (por Flávio Colker)



Vinha fotografando muito com o celular. A câmera está sempre à mão e, como sou tímido, fico sem graça quando aponto para alguém que não pediu para ser fotografado. O celular disfarça as minhas intenções. Viajando pelo México recentemente, fotografei muito com o MotoG e fiquei inseguro com a pouca resolução das imagens. Daí, de estalo, resolvi comprar uma câmera pequenininha que mantivesse a discrição do celular e tivesse mais qualidade.

Sou um fotógrafo de poucas câmeras; quanto menos cuido da câmera, mais eu penso no que está à frente dela. A fotografia é mensagem, ideia… uma escrita. A marca da caneta pouco importa…, mas agora minha caneta podia falhar ou era apenas uma intuição de que essa compra era necessária à fotografia. A não ser em momentos raros, sempre comprei câmeras fora do Brasil, e o motivo é simples: praticamente inexiste o comércio de aparelhos fotográficos por aqui. A razão, quando comecei a fotografar, muito jovem, era a ausência de mercado e o pouco dinheiro do povo para luxos como câmeras fotográficas. E havia os impostos. Hoje o mercado no Brasil é imenso… e, no entanto, ainda não encontro lojas grandes de fotografia com vitrines repletas de modelos. Lembro a primeira vez que vi uma dessas em NY, e fiquei emocionado; emoção de estar diante de uma vitrine que conhecia apenas de ouvir falar. O Brasil é um país gigantesco com uma classe média afluente, a fotografia é popular, disseminada, consumida e continuo comprando câmeras fora daqui. Por quê?

Então, estava eu no México, sábado à noite: decidi procurar uma câmera. Entramos em um shopping para comer um doce e pedi para dar uma olhada em alguma loja, sem tomar muito tempo da família. O shopping era gigantesco e, além de boutiques como Prada, Mac Stores etc… havia as grandes lojas de departamentos: Liverpool e Palacio de Hierro. Dois gigantes do consumo sofisticado. Fui parar no Palacio de Ferro. Dentro da loja, passei por andares repletos de marcas até chegar às cameras fotograficas. Nas vitrines, sempre as vitrines, várias câmeras para consumidor avançado (não profissionais) da Canon e da Nikon. Pedi ao vendedor qualquer uma que fosse barata e pequenina. Ele mostrou uma Canon sem muito entusiasmo. Logo disse: isso é ultrapassado: celulares são melhores… E não me empurrou o que eu não precisava.

Em segundos, apareceu um senhor sorridente (feio e extremamente simpático) com algo que, na aparência, vinha direto dos anos sessenta: uma câmera prateada, de linhas curvas e inclinadas: pequenininha, carismática. Fiquei fascinado mas o trabalho do vendedor estava apenas começando. Por mais que eu quisesse comprar de uma vez, ele iria demonstrar com propriedade o funcionamento daquela câmera. O sujeito conhecia todos os detalhes e possibilidades do aparelho: desde o funcionamento até as qualidades do sensor. Foram dez minutos de demonstração. Poucas vezes vi alguém manejar uma câmera com tanto conhecimento de causa. Câmeras digitais são excessivamente complicadas e geralmente dominamos apenas uma parte das funções. Estou acostumado a trabalhar com assistentes de câmera, eles conhecem equipamento mas o vendedor conseguia a minha admiração pelo conhecimento daquele aparelho e aumentava o meu desejo de comprar. O preço foi fornecido logo também… e havia um desconto enorme. A câmera custaria 400 dólares quando o seu preço era de quase mil. Havia outra bem mais cara, e fui desestimulado a investir qualquer atenção. Ele não tentava me vender algo que eu não poderia comprar. Eu já estava pronto para fechar o negócio mas o vendedor continuava demonstrando tudo que a câmera podia fazer. Estava sem cartão e pedi emprestado a quem me acompanhava prometendo pagar quando chegasse ao hotel, tamanha era a vontade de ter a câmera. Fechado o negócio, saí da loja flutuando num barato que há muito não experimentava. Havia comprado algo perfeito. Descobri um tesouro. Logo tive a epifania: esse povo aqui sabe vender, transformam a experiência comercial em arte.

Os mexicanos construíram impérios onde o comércio foi valorizadíssimo. A cultura criada por eles, da arte escultórica, arquitetônica aos códices escritos, foi movida pelo comércio. No Brasil eu jamais havia experimentado essa plenitude ao comprar qualquer coisa, e sempre olhamos para Europa ou os Estados Unidos ao estabelecer nosso critério de qualidade de consumo (ou qualquer outro critério). No entanto eu estava em um país mais pobre do que o Brasil, em um shopping onde tudo do bom e do melhor era muito mais barato do que no Brasil. Vendedores que sabem vender conhecem profundamente aquilo que vendem e elevam a experiência do consumo a um grau altíssimo de satisfação. Daí, eu entendi como o comércio poderia mover as coisas no Brasil. Ao comprar essa câmera eu me aproximei mais da fotografia. Ao comprar um computador você se aproxima mais da escrita, da comunicação. Ao comprar uma roupa você se aproxima da elegância. Ao preparar os vendedores, fabricantes e importadores, o comércio educa. Ao proporcionar segurança para o consumo, as cidades se tornam seguras. Entendi ali que a fragilidade civilizatória do Brasil passava também pelo desprezo ao comércio. Não enxergamos algo muito simples: a potência civilizatória do comércio.

Os projetos brasileiros de sociedade, defendidos aos berros nas redes sociais, não incluem o aprimoramento comercial. As ideias de transformação, muito ambiciosas e agressivas, nunca se dedicam a promover o comércio enquanto motor de educação, liberdade, segurança e tolerância. Não fosse a revolução comercial na Europa, não haveria o Renascimento, nem a tolerância religiosa e nem a liberdade de pensamento.

Vocês já se perguntaram de onde vêm a tolerância as diversidades associada a New York? E a vocaçao para a ciculaçao de cultura? A cidade se chamava Nova Amsterdam, pertencia aos holandeses; povo que comerciou e financiou e que sempre foi tolerante para poder assim comerciar melhor. No Brasil, poderíamos diminuir a gritaria em torno da tolerância e encará-la não apenas como metafísica do Bem, mas também como ferramenta necessária ao comércio e à riqueza. Se assumíssemos a tarefa de aprimorar a nossa tradição comercial, teríamos uma sociedade mais tolerante e educada sem que houvesse necessidade de policiamento de hábitos nas redes sociais. Alguém já se perguntou como os gays ganharam espaço e tolerância na sociedade americana, a primeira a reconhecer os direitos das diversas identidades sexuais? Pesquisas nos anos 80 indicaram que os gays formavam um segmento que consumia mais do que casais heterossexuais: de roupas a arquitetura, turismo etc… O comércio foi a ponta de lança da aceitação e da tolerância, porque o consumidor deve ser respeitado. Se, no Brasil, o Estado respeitar mais o comércio, diminuindo as taxas, facilitando as importações e, se o comércio, por sua vez, respeitar o consumidor como fundamento de sua atividade, teremos um país melhor, sem necessidade de tanta brigalhada política ou de salvadores da pátria, liberdade e igualdade. Por natureza, o comércio abraça a liberdade, a tolerância e a riqueza para todos.

Bom… é isso.






Em PÁGINAS VIRADAS, que tem curadoria de Andre Sheik, Flavio Colker mostra sua série mais recente, composta por 7 fotografias em que o artista explora a materialidade das páginas de livros. Relevos, texturas e dobras estão em evidência.








“Fotografei a leitura. O livro é um lugar que visito como se voltasse ao lugar da minha infância. As páginas são paisagens desse lugar.”
​(Flavio Colker)

Sobre Páginas Viradas, de Flávio Colker:
"Imagens emergem das páginas de livros. Não são imagens mentais, construídas pela imaginação de um possível leitor; são imagens visuais, impregnadas no papel e, posteriormente, na retina do observador. Enquanto texto, são apenas fragmentos; na qualidade de fotografias, o são por inteiro. Ao mesmo tempo que, vistas em conjunto, nos atraem, por vibrarem cores que sequer estão no papel, de perto, todas próximas em um único ambiente, causam certa repulsa, física até. Não é possível apreender o significado dos livros retratados, embora as imagens não sejam retratos de livros (o retrato de um livro seria visual ou narrado?). Novamente, isso nos atrai, nos instiga, deixa-nos curiosos para descobrir os desfechos daquelas palavras, querer saber a que livro pertencem, ou mesmo suas traduções (para as que estão em língua estrangeira). Todavia não obtemos resposta. Desamparo. Quem fotografaria livros, se posso (posso?) pegá-los em minhas mãos? Seria este procedimento uma “arqueologia do futuro”? É possível que um bibliófilo reconheça todos os livros, textos, edições, autores… Isso o faria estabelecer alguma relação com o trabalho? Atração ou repulsa? São as imagens que estão carregadas de significâncias, não as palavras que podem ser lidas nelas. Há quem acredite que toda imagem (ou trabalho de arte) carregue em si uma textualidade. Ou um subtexto. Para mim, trabalhos de arte prescindem de explicação textual/verbal. E o que faço eu, aqui, escrevendo sobre imagens? Procuro o fio de um novelo. Talvez possa mostrá-lo; quem sabe você mesmo não puxa outro? Paradoxos, oposições, tensões. Trabalhos de arte não apaziguam (apaziguam?). É possível adentrar Páginas Viradas pela fotografia da imagem presente, reconhecível: Alice. Porém isso nos levaria ao mundo dela, fantástico, e cairíamos na armadilha labiríntica de seu diálogo com o Coelho Branco: “Pode me dizer qual caminho devo tomar para sair daqui?”, perguntou Alice. “Isso depende muito de para onde você quer ir”, respondeu o Coelho Branco. Que tal entrar pela poesia? Não a poética da obra de arte, mas a da definição literária presente no Dicionário de Poética e de Retórica (de Henri Morier): “A poesia pura é indefinível.” Ponto. Pronto. Podemos observar os volumes das páginas criados pela manipulação (física) de Colker. E os sombreamentos sobre eles. As sombras constroem ondas, como em um mar revolto, e talvez seja isso que traga a sensação de se estar mareado. Elas são também como velas que conduzem o olhar, funcionando igualmente como velaturas. Revelações, desvelamentos. O que nos dizem estas imagens? Pelo visto, puxei muitas linhas, sem contudo desmanchar o novelo. Toda obra é um enigma que não se presta à decifração."
(André Sheik, junho de 2017)





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