Friday, August 11, 2017

O EMPREGO ÚNICO (uma crônica de Dia dos Pais de Marcus Vinícius Batista)



Ser pai é o melhor e o pior dos cargos. É vitalício. É intransferível. É imprevisível. Quando você fica com o emprego, ninguém te avisa o porquê de seu nome na lista de selecionados. Você pode ser contratado sem ter pensado em se candidatar à vaga. Basta distribuir o currículo por aí que alguém se encarrega de analisar seu perfil. 

O trabalho é sem rotina, sujeito a viagens para hospitais, escolas e apresentações de balé ou judô no final do ano. Quando você assume a função, a hierarquia é estabelecida no primeiro dia. Não há curso de trainee ou estágio para que se adquira experiência. Quem te emprega, não te entrega manual de instruções. Os riscos de demissão e promoção são iguais a zero. 

Tenho alguns anos de janela nesta área. Oito anos e 10 dias, para ser preciso e posar de competente. Por mais que se encham prateleiras de dicas e dicionários sobre a paternidade, não existem teorias que se aproximem da prática inerente ao cargo. Por mais que dois profissionais conversem e troquem percepções deste trabalho, as informações jamais servirão para os momentos de crise e para os episódios de felicidade, tão particulares quanto os macetes da profissão. 

Para refletir e depor sobre este emprego, não vejo outra saída: sentimentos e poesia. Racionalizar incorrer cantar em falsete. 

Ser pai é compreender que o controle sobre os fatos e sobre as pessoas cheira à ilusão. É menos doloroso se compreendermos logo de cara que a paternidade se move pelas vias da orientação. Qualquer desejo de perpetuar imagem e semelhança implica em autoritarismo. 

Ser pai é engolir e digerir o sofrimento alheio de mãos e pés atados. Não se pode correr ou interferir. Aceitar a tortura da dor ameniza o sangramento. Explicar o erro que se aproxima do outro é pregar no centro do vazio. Explicar reforça a redundância, com resultado absorvido sem garantias de entendimento completo. 

O pai suporta uma dor que nunca será sua. A dor do outro que corre pelas veias da impotência. Jamais reclama. Lágrimas são atos discretos de quem precisa ser impassível como um guarda real britânico.

Ser pai é assumir-se como o carcereiro que responderá processo administrativo. O carcereiro que mantém seus presos sob seus braços, mas que se vê obrigado a abrir as celas para deixá-los tomar banho de sol, sem retorno, com direito à escolha própria dos crimes. O carcereiro não precisa saber o porquê da concessão da liberdade. É o cego que cruza a avenida de olho na sorte. 

Ser pai é sentar-se na arquibancada e acompanhar o andamento do jogo com uma tarja na boca. Sem direito a cantos ou sugestões de substituição no time. Ainda que seja o técnico, qualquer esquema tático não mudará o jeito da equipe jogar sem que o astro principal decida executá-lo. 

Apenas um pai é capaz de transpirar o testemunho do nascimento. O único que não pode também descrevê-lo. É um egoísta abençoado pelo início de um roteiro que nasce acompanhado de páginas em branco. E uma caneta em mãos. 

O pai é o único sujeito, no mês de agosto, capaz de dizer com sinceridade nos olhos que o presente recebido não era necessário. Quando cercado por quem merece, é verdadeiro ao encher a boca para declarar que possui tudo. É o instante do divino, ainda que o olhar seja uma brincadeira com a humildade. 

O pai, no dia dele, doa a si mesmo, sem direito a definir o donativo. Sorri com aquilo que recebeu, mesmo que seja a reprise do ano anterior. A repetição assegura o prazer da continuidade. A repetição carrega a ênfase do que se sente, sem pedido de troca ou restituição. 

O pai não pode – jamais! – cair em tentação. Viver sob resistência, como um diabético que se encontra com um refrigerante no calor. Resistir a nunca impor seu espelho aos filhos. Eles nunca serão o que desejamos. Nunca farão o que sonhamos. Nunca estarão onde rezamos. Sonhar os sonhos deles é direito, jamais imposição ou realização. 

O pai, quando ouve que seu filho é igual a ele, deve ser sentir ofendido. Filhos tem que ser melhores. Para bem de todos e felicidade geral da nação. Filhos nasceram para nos indicar que, um dia, seremos obsoletos. Seremos teóricos de um cotidiano que não conhecemos. 

A vantagem é que, quando nascem, filhos nos dão a chance de sermos melhores. O passaporte único, impossível de ser devolvido ao portador. Se não nos sentirmos melhores, que fique a consciência de que os dias mudaram. E as madrugadas também. 

Ser pai é vestir a máscara da paranóia. Não dormir quando o outro se atrasa. Levantar no meio da noite para verificar a respiração óbvia e serena do bebê. Nunca mais repousar uma noite inteira e seguir a religião da insônia. A fé nos cânticos de um choro só. O milagre santificado no sorriso sem dentes, suficiente para demolir o castelo de irritação e raiva construído em dia ruim. 

Como pai, não sou visionário. Jamais teria uma salinha de conselhos sentimentais ou simpatias que salvam ou resgatam os relacionamentos amorosos. Um vidente com competência prevê a próxima curva para si, antes de qualquer vítima do charlatão. 

Pensei que daria conta de apenas uma menina. Errei. Mas o medo diário de não conseguir dorme como inimigo. 

Culpei as cartas, a borra de café e mandingas para bater no peito de que não seria capaz de repetir a dose. E se os dois corressem para lados opostos? Dois filhos mostram como são importantes dois braços e duas pernas. Para apanhá-los. Para acompanhá-los. Para abraçá-los. Para acolhê-los. Para protegê-los. Para soltá-los. Livres e imperfeitos, porém únicos. Como o melhor e o pior emprego que poderia obter.


(publicado originalmente em Conversas e Distrações em 8 de agosto de 2010)



 
Marcus Vinícius Batista
é o cronista santista número um, ponto.
É autor de "Quando Os Mudos Conversam"
Realejo Livros)
coletânea de crônicas escritas
entre 2007 e 2015
e mantém uma coluna semanal
no Boqueirão News
que é aguardada com avidez
por sua legião de leitores.
Atendendo a um pedido
de LEVA UM CASAQUINHO,
ele se dispôs a resgatar
algumas de suas crônicas favoritas
escritas nos últimos anos
para republicação no BAÚ DO MARCÃO.


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