Saturday, August 19, 2017

HOJE NÃO TEM CRÔNICA (uma crônica de Joaquim Ferreira dos Santos)



Não está acontecendo nada, é apenas mais um assalto no Rio de Janeiro, uma banalidade que não será registrada no Boletim de Ocorrências da 14º DP, distante 100 metros. Os repórteres de polícia perguntarão se tem mortos no local. Diante da resposta de “negativo, operante”, desprezarão, entediados. Estão certos. Não está acontecendo quase nada. É apenas um fato de rotina que no máximo ajudará a cidade a se manter olímpica no ranking da violência. Ninguém morrerá esta noite no Leblon. Apenas o de sempre nessa modalidade cada vez mais carioca de vivenciar o perigo ali na esquina e, uma prova depois da outra, se buscar a medalha de ouro da sobrevivência.

O sensacional do evento é que desta vez o cronista está na cena do crime. Ninguém contou com aquela voz de Pato Donald que os telejornais usam para não identificar a testemunha. Ele é a própria. Ali está o assaltante adolescente, a assaltada humilde e a possibilidade de que a roleta do destino, se ela girar um pouco mais para cá, se a sorte se deixar inebriar amarga pela maresia que chega do mar do Leblon, pode ser que a violência em seguida se volte contra o cronista. Não chore, não grite. Há uma câmera flagrando tudo do alto de algum poste. Mantenha-se numa aflição abaixo do pânico. Tente ficar frio obedecendo às ordens daquele plástico do carro engarrafado num dos cantos desta cena. Keep calm, be happy. Seja o que Deus quiser.

São 18h15m do início da noite de quinta-feira passada, e tem início a operação que agora já se junta ao balanço da garota a caminho do mar como uma das cenas típicas da cidade. Um clichê novo, quase uma paródia pelo avesso daquele antigo cartaz sorridente anunciando a chegada à Barra da Tijuca: “Mãos ao alto, você está no Rio”.

Você está no Leblon, passando ao lado de um grupo de umas 20 pessoas empacotadas no inferno diário de tentar pegar um ônibus no ponto em frente à calçada do Rio Design Center, na Avenida Ataulfo de Paiva. Todas mostram o rosto iluminado pela tela do celular. De vez em quando olham para o lado esquerdo na esperança de que a carruagem chegue. O trânsito não se mexe, o ônibus não aparece, a poeira da obra do metrô a todos aborrece, e os postes inclinados do bairro projetam uma luz fantasmagórica sobre a noite de metro quadrado mais caro do mundo, o breu do Leblon.

Essas pessoas passaram o dia inteiro presas dentro de escritórios. Chegaram a seus presídios depois de uma hora e meia de transportes miseráveis, agora vão levar outra hora e meia até suas camas no outro lado da cidade. Amanhã, tudo de novo. É um inferno, mas pode piorar.

Pela beira da calçada vem chegando numa bicicleta o garoto de sempre, tantas vezes lido em alguma matéria de jornal, tantas outras visto numa daquelas cenas das câmeras de segurança que nos vigiam 24 horas. Os repórteres de polícia morreriam de tédio, mas a banalização da cena é o novo preto. Antigamente os cronistas saíam pelas ruas atrás de borboletas amarelas. A partir do voo urbano delas, em pleno Centro do Rio, traçavam filosofias de um lirismo comovedor e vibravam a poesia de morar aqui. Era a banalidade do Rio. A borboleta amarela agora é o garoto que se aproxima feito um morcego e, vapt, tira o celular de uma das mulheres no ponto do ônibus.

A pancada é mal dada. Ele pega o telefone das mãos da vítima, mas se desequilibra da bicicleta. Para dar a arrancada da fuga precisará colocar novamente os pés no chão e refazer os planos. É um garoto magro, esticado, de calção e camiseta. Faz seu papel em silêncio, sem ameaças desnecessárias além da que representa com sua ação. Não pode perder tempo. Aparentemente, não terá como sair dali. Está cercado de carros por todos os lados, no meio do engarrafamento, e perder o embalo das pedaladas não estava nos seus planos. Frio, ele reposiciona a bicicleta. Como se ela fosse um daqueles cavalos do Velho Oeste, que iniciam o arranque com as patas dianteiras corcoveando o ar, o assaltante do Leblon faz o mesmo com a roda da frente da bicicleta. Sai cortando o trânsito para o lado esquerdo, começando a fuga para entrar na Avenida Afrânio de Melo Franco e depois, quem sabe, à direita, na Cruzada São Sebastião.

Toda a cena é espalhafatosa, sinalizadora para quem vê de longe que algo estranho acontece. Antes que a vítima e seus colegas de ponto de ônibus comecem a gritar “ladrão”, um motoqueiro, meia dúzia de carros atrás, percebe o assalto — e acelera. Parece o início de um sensacional filme de perseguição, com as ladeiras clássicas de São Francisco agora substituídas pelo engarrafamento da Ataulfo de Paiva. As dificuldades de manobra são idênticas. Os carros estão muito próximos um do outro, o que dá ligeira vantagem à bicicleta, mais fina. Ela já está 50 metros afastada da cena do crime quando o motoqueiro desvia de um carro para entrar num corredor e se aproximar do bandido — mas está acelerado demais para a manobra. Bate num carro. Para a decepção do público, que da calçada torcia pelo mocinho urbano com seu poderoso cavalo de ferro, ele cai ao chão. É a segunda vítima da noite, com o braço quebrado e a moto avariada. Na vida real carioca não tem happy end. O bandido fugiu.

publicada originalmente em 03 de Outubro de 2015 em



Joaquim Ferreira dos Santos
nasceu no Rio de Janeiro.
Trabalhou como repórter,
crítico de música e show na revista Veja
durante mais de dez anos.
Foi editor das revistas Domingo e Programa,
do Jornal do Brasil.
Em 91, foi editor executivo de O Dia.
Atualmente é editor e cronista em O Globo.
É autor de Feliz 1958 - O Ano Que Não Devia Acabar
O Que As Mulheres Procuram Na Bolsa,
e acaba de lançar a biografia de seu grande amigo
Zózimo Barroso do Amaral,
intitulada Enquanto Houver Champanhe, Há Esperança
(Editora Intrínseca)

No comments:

Post a Comment