Friday, August 25, 2017

SURDO É A VOVOZINHA (uma crônica de Antonio Luiz NIlo)



Tem uma “senhorinha” numa das esquinas do Gonzaga, o bairro onde eu moro e trabalho aqui em Santos, que todo santo dia entrega panfletinhos na calçada para o povo apressado. São panfletos de aparelhos para surdez.

Apesar de publicitário, não costumo apanhar os panfletos que as dezenas de desempregados, os sobreviventes da informalidade, distribuem nas ruas desse tradicional pedaço da orla de Santos. Não os apanho por vários motivos... e por mais curiosos que vocês estejam, eu não vou dizer quais são.

Mas a “senhorinha” dos aparelhos de surdez, com seu semblante cansado, a pele enrugada pelo severo sol santista e sempre com um leve sorriso nos lábios, acabou me conquistando. Ao ver esticado o seu curto bracinho em minha direção, não tive como não apanhar o panfletinho mal diagramado. Quando percebi que era uma propaganda de um aparelho de surdez, confesso que estanquei o meu projeto de sorriso e a olhei com um certo ar de censura. Porra, tenho 57 anos mas, como diz o meu filho mais velho, sou meio “lenda do surf”, estilo garotão, só ando de bike, jogo beach tennis, treino... pareço ter no máximo 56 anos (como diz o sacana do meu filho mais novo).

Foda-se, fiquei puto com a velhinha. Mas, para não ser mal-educado com a galera da melhor idade, que transborda nas ruas do Gonzaga, apenas me afastei e tive o cuidado de só jogar o panfleto no lixo quando já estava fora do seu alcance visual.

No dia seguinte, a mesma coisa: procurei sair do seu raio de ação, mas ela projetou o seu corpinho minúsculo para frente e me entregou o panfleto. Li, na esperança de que fosse propaganda de um outro produto qualquer, mas lá estava a foto do aparelhinho no ouvido de uma outra “senhorinha” mais sorridente.

Na terceira vez que nos deparamos na mesma calçada da mesma esquina da mesma rua tive a mesma sensação de incômodo. Tentei atravessar a avenida ainda com o sinal de pedestres fechado, mas o movimento dos carros cerceou os meus. Senti uma mãozinha no meu ombro... e lá estava a “senhorinha” com o seu indefectível panfletinho vendendo aparelhos de surdez.

Da quarta vez em diante, relaxei e passei a recusar o panfleto, como já deveria ter feito há muito tempo.

Ontem, indo para o trabalho com a desatenção de quem acabara de se empanzinar com um prataço de moqueca de cação com pirão de farinha e dendê, topei com a “senhorinha” com a mão esticada em minha direção e os seus olhos inquisidores fuzilando os meus.

Foi então que resolvi explicar, com todos os fundamentos da propaganda e do marketing, que ela, como distribuidora de panfletos, tinha a obrigação de identificar o seu público e só entregar os panfletos para aqueles que potencialmente poderiam consumir o seu produto. Sob o seu olhar atônito e surpreendentemente interessado, desfiei um novelo de argumentos publicitários tentando explicar para a “senhorinha” que ela não deveria mais entregar para mim o seu panfleto vendendo aparelhos de surdez.


Perdi quase 5 minutos nessa tarefa. Digo “perdi” porque tenho certeza de que ela não captou absolutamente nada do que eu falei. Na verdade, ela não escutou.


Antonio Luiz Nilo
nasceu em Santos
e é redator publicitário
e diretor de criação
há quase 30 anos,
com prêmios nacionais
e internacionais.
Circulou a trabalho
por todo o país,
com paradas prolongadas
em Brasília,
Belo Horizonte
e Salvador.
Publicou em 1986
"Poemas de Duas Gerações"
e, mais recentemente, o romance
"Ascensão e Queda de Pedro Pluma"
(à venda em alnilo@gmail.com).
Além disso, atuou como cronista
para o diário Correio da Bahia.
De volta a Santos desde 2013,
Antonio é sócio-diretor
da Agência de Textos
TP Texto Profissional.





 

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