Friday, May 26, 2017

A GOLEADA (uma crônica de Marcus Vinícius Batista)




Não gosto de goleadas. Não entenda como a frase definitiva de um despeitado, de alguém que resolveu esbravejar de cabeça inchada, de um sujeito que não sabe perder ou de um torcedor que decidiu fugir dos defeitos do time do coração.

Goleadas tiram o prazer do futebol. Representam um ato de violência contra este jogo, que – por essência – necessita do equilíbrio, das reviravoltas, das viradas no placar, da possibilidade de dar ao pequeno a real esperança de derrubar o gigante.

Na conversa de vestiário e de boteco, a goleada começa com 4 a 0. É o placar que serve de fronteira entre a luta e a surra. A partir daí, não testemunhamos uma partida, e sim um apedrejamento em praça pública, um espancamento torpe, sem a chance de defesa, ainda que seja ilegítima.

As goleadas evidenciam a solidão de quem vence. Dar um chocolate não significa adocicar a derrota do oponente, mas fornecer a ele uma overdose de glicose, quando o índice de diabetes já se encontra acima de 300. Quem goleia não se sente odiado, amado ou admirado. Do outro lado do campo, só se vê vergonha de si mesmo, paralisia diante do inesperado ou a resignação perante o que se sabia na véspera.

Goleadas não servem como treinamento. É vencer sem sofrimento, dor ou taquicardia. Quem goleia enrola os próprios defeitos nas redes adversárias. Quem perde fica sem saber se ainda possui alguma qualidade que mereça ser explorada no próximo jogo. Pior: se ali existe um time capaz de correr amanhã, capaz de perder de pouco ou até de empatar.

Golear é abdicar de preceitos religiosos, da moralidade cristã. É a conquista sem penitência, a glória sem sacrifícios, que dispensa as orações, o pedido ao desconhecido, a vitória concedida aos escolhidos. O time goleado, que deveria ser o símbolo do pecado, transfere a culpa ao vencedor, incapaz de ser misericordioso, sem piedade diante de homens caídos.

As goleadas provocam relaxamento dos torcedores, tanto nas arquibancadas como nos sofás. Não há surpresas. Não há suor, gula, consumo excessivo de qualquer substância legal ou proibida. A narrativa vai permanecer linear como história mal contada. Os personagens seguirão suas vidas, naquele jogo, sem sobressaltos. Vilões e heróis serão os mesmos.

Quando um time goleia, ele lacra a porteira das emoções. Morrem o medo, a fé, a ansiedade, a angústia e a raiva. Se um time perde por 5, 6, 7 a 0, o torcedor constrói uma couraça para sustentar a dor. Não há o que falar, a digestão será tão lenta quanto um almoço de três horas.

Se meu time vence, perco a atenção e a vigilância sobre a partida. Sem riscos, o torcedor não poderá se servir do ópio. Os problemas de amanhã tocam a campainha sem que o jogo tenha terminado. O futebol perde o encanto, torna-se previsível como uma noite de casados no trio elétrico. Talvez se toque no assunto no dia seguinte, mas aí a ausência de calor racionaliza e pasteuriza as opiniões. Os absurdos dos palpiteiros dão lugar aos comentaristas de gravata.

Entre dois times grandes, a goleada se equilibra na corda entre dois edifícios, cuja queda beira o desrespeito. Quem vence se vê na obrigação de respeitar a história alheia, talvez pensando em si próprio, talvez no temor da mínima chance de ressurreição do derrotado. É um código de honra entre leões, no qual se morre com glórias, mata-se com compaixão.

Não deixe de ver futebol por causa de goleadas. Elas permitem uma exceção. A goleada só vale contra o rival histórico. Neste caso, o sangue tem gosto de doce de criança, gulosa pela repetição até passar mal. Vencer o maior rival é o gozo da vingança porque quem hoje goleia já sentiu as marcas dos pneus em dia de atropelamento.

Em goleadas, Brasil e Alemanha jamais será como Santos e Corinthians, Flamengo e Fluminense, Real Madrid e Barcelona, o time da minha rua contra o da rua ao lado. Nestes jogos, golear é missão, humilhar é dádiva, ganhar é ter o que dizer para sempre, mesmo que dure até a próxima partida, mesmo que seja por 1 a 0.


(publicado originalmente em CONVERSAS E DISTRAÇÕES em 18 de Abril de 2017)

 
Marcus Vinícius Batista
é o cronista santista número um, ponto.
É autor de "Quando Os Mudos Conversam"
Realejo Livros)
coletânea de crônicas escritas
entre 2007 e 2015
e mantém uma coluna semanal
no Boqueirão News
que é aguardada com avidez
por sua legião de leitores.
Atendendo a um pedido
de LEVA UM CASAQUINHO,
ele se dispôs a resgatar
algumas de suas crônicas favoritas
escritas nos últimos anos
para republicação no BAÚ DO MARCÃO.

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