Thursday, May 4, 2017

RESENHAS AO LÉU: BOB DYLAN E SUA MÚSICA LITERÁRIA (OU SUA LITERATURA MUSICAL)


por Chico Marques


Não existe, nunca existiu, e talvez nunca venha a existir nada na música popular americana que se compare a Bob Dylan. Seja em grandeza poética, em postura existencial, em atitude musical, no que quiser...

Depois de ganhar o Nobel da Literatura então, qualquer comparação que ainda pudesse ser estabelecida entre ele e qualquer outro artista se revela inútil.

Bob Dylan é o máximo, ponto.

Desnecessário dizer que a Academia Sueca não premiou Dylan por conta de seu complexo mas duvidoso romance "Tarantula", de 1971 (recentemente relançado no Brasil pela Editora Planeta), nem por suas surpreeendentes "Crônicas, Volume 1", de 2004 (Editora Planeta), considerado pela Billboard "o melhor livro sobre música já escrito".

Não.

Dylan foi laureado por sua contribuição literária como compositor popular -- algo inédito na história do Nobel.

Passados alguns meses da polêmica premiação -- que se seguiu de um mau jeito diplomático entre Dylan e os suecos, que acabou sendo indevidamente amplificado pela Imprensa, para depois ser devidamente consertado --, ninguém mais questiona se ele mereceu ganhar o prêmio ou não.

Seus textos vem sendo relidos e reavaliados desde então, e devidamente reeditados. Seu clássico livro "Writings & Drawings", lançado em 1975, reunindo seus poemas musicais e seus desenhos realizados entre 1961 e 1973, veio a se transformar num volume cavalar editado pela Simon & Schuster, intitulado "The Lyrics 1961-2014".

Que agora chega ao Brasil numa edição bilíngue em dois volumes: um lançado agora, focalizando sua produção entre 1961 e 1974, e outro a ser lançado no início de 2018, focalizando sua produção de 1975 até os dias atuais.

Mas antes de falar do livro, falemos um pouco de Bob Dylan.

Caso você conheça bem sua longa trajetória, e não queira perder tempo com digressões cronológicas, pule o texto em bordô que vem logo a seguir.



Bob Dylan nasceu Robert Zimmeman em Hibbing, Minnessota, em 24 de Maio de 1941.

Desde criança já era bem diferente de seus colegas de escola.

Na adolescência, gostava de motos, Marlon Brando, literatura, rock and roll, e virava as madrugadas ouvindo estações de rádio negras de Chicago especializadas em blues, cujas ondas alcançavam a gélida região de Minnessota graças ao fabuloso espelho d’água dos Grandes Lagos do Meio-Oeste americano.

Não demorou muito até perceber que Hibbing não era grande o suficiente para ele, e zarpou para Nova York, onde começou a cantar em bares no Greenwich Village ao lado de alguns grandes heróis musicais seus – mestres do blues como Lonnie Johnson, Sonny Terry, Little Junior Parker e Jimmy Reed, e do folk moderno como Fred Neil e Dave Van Ronk.

Enquanto seus dotes como músico floresciam, sua poesia ganhava força, e esses dois fatores unidos acabaram chamando a atenção de John Hammond, o grande descobridor de talentos da Columbia Records, que não sossegou enquanto não arrumou um contrato para ele gravar um disco.



Seu primeiro disco, de 1961, apresentava canções de vários artistas, principalmente de Woody Guthrie, com certeza a influência mais forte naquele momento de sua carreira, e foi um sucesso estrondoso nos círculos folk.

De um momento para outro, Dylan virou uma estrela no gênero, Isso aconteceu de forma mais intensa logo após o lançamento de seu segundo disco, “The Freewheelin’ Bob Dylan”, só com canções próprias, e ficou mais forte ainda após o lançamento do terceiro, “The Times They-re A-Changin’”.

Por volta de 1964, não havia na América um cantor folk mais sintonizado com sua época e com uma poesia tão forte e imagética quanto ele.

Daí em diante, sua fama passou a seguir bem além dos círculos folk.

Aos poucos os limites estreitíssimos desse gênero começaram a virar uma prisão.

Foi quando que ensaiou a grande virada musical na sua carreira – a mais contundente de toda a a história da música popular americana.

É um pouco difícil para as novas gerações entender a importância desse ato naquele momento histórico, mas Dylan resolveu que estava na hora de deixar o violão e os palcos do Village de lado, e pegar uma guitarra elétrica para se comunicar com o público do rock and roll, que crescia absurdamente na América por conta da explosão da contracultura em meados dos anos 60.



Ao contrário das platéias folk, que abominavam o rock and roll, Dylan adorava – cresceu ouvindo Elvis, Chuck Berry e Little Richard.

E, à revelia das expectativas das platéias folk, resolveu de uma hora para outra virar um artista de rock and roll.

A reação dos velhos fãs foi extremamente truculenta.

Dylan entrou empunhando uma guitarra Fender Telecaster e acompanhado pela Paul Butterfield Blues Band no Newport Folk Music Festival, em 65, e levou as primeiras grandes vaias da sua vida.

Vaias intermináveis, seguidas de uma debandada geral na platéia, inconformada com a transformação radical de seu grande herói.



Mas, na medida em que as platéias folk o abandonavam, as platéias roqueiras ganhavam o porta-voz dos anseios de toda uma geração e de toda uma época.

E ele rapidamente se transformou no artista de rock and roll número um da América.

Com discos magníficos como “Bringin’ It All Back Home”, “Highway 61 Revisited” e principalmente “Blonde On Blonde”.

Que traziam canções poderosíssimas como “Subterran Homesick Blues”, “Like A Rolling Stone”, “Rainy Day Women” e “Just Like A Woman”, entre outras.



Então, de repente, Dylan some da cena novamente.

Motivo: um acidente de motocicleta, bastante grave.

Sua recuperação motora foi muito lenta, e, por conta disso, seguiu para a cidade de Woodstock, no estado de Nova York, e alugou uma casa de campo cor de rosa com um porão enorme onde montou um estúdio de gravação.

Que -- desnecessário dizer -- acabou virando um hotel para músicos amigos que passavam os dias tocando com ele.

Como o engenheiro de som e produtor Rob Fraboni havia se mudado para lá, e gravava tudo o que rolava no estúdio da casa, o resultado dessas sessões foi selecionado e enviado à Columbia Records.

Que, por sua vez, recusou os tapes ,alegando que eram pouco comerciáveis e rústicos demais.

Curiosamente, essas gravações vieram à tona no início dos anos 70 em discos piratas disputadíssimos, que venderam um milhão de cópias -- o que certamente matou os executivos da Columbia de ódio.

Dylan não se importou com isso.

Achou ótimo.

Até porquê daí em diante a Columbia nunca mais pusaria recusar um disco dele, fosse o que fosse.



Depois desse período de reclusão, Dylan gravou uma sequência genial de LPs -- “John Wesley Harding”, “Nashville Skyline” e “New Morning --, onde flerta abertamente com a country music, e, de quebra, com várias outras modalidades musicais americanas tradicionais.

E, de quebra, embarcou num projeto do cineasta Sam Peckinpah, o filme “Pat Garrett & Billy The Kid”, onde estreou como ator e como compositor de trilhas sonoras.

Por volta de 1973, ele, que não fazia uma tournée há cinco anos, caiu na estrada novamente.

E o melhor de tudo: conseguiu convencer seus velhos companheiros das sessões de gravação na casa cor de rosa em Woodstock a ser novamente sua banda de apoio numa longa tournée.

Detalhe: esses velhos companheiros, ilustres desconhecidos em 1968, eram agora The Band, a banda mais prestigiada da América, e eles toparam a brincadeira.



Primeiro, Bob Dylan & the Band gravaram um disco belíssimo de estúdio juntos – “Planet Waves”—e depois brilharam nos palcos da América – e essa tournée vitoriosa está registrada no magnífico album ao vivo “Before The Flood”.

Com isso, Dylan fez mais uma grande reentrada na cena musical americana. Gravou discos belíssimos como “Blood On The Tracks”, “Desire” e “Street Legal”, e passou a engatar uma tournée na outra, levando uma vida nômade.

Essas tournées eram louquíssimas.

A “Rolling Thunder Revue”, por exemplo, correu a América toda em 1976 com um elenco de grandes estrelas passando só por cidades pequenas, com shows mambembes montados em cinemas e praças públicas.

Já na tournée seguinte, Dylan veio acompanhado por uma pequena orquestra de soul music, para trazer aos palcos o clima carregado do belíssimo disco "Street Legal".

E depois disso teve ainda o flerte de Dylan ao cristianismo, que deixou a comunidade judaica americana perplexa por dois anos e 3 discos de temática gospel, decorrente de um perído extremamente sombrio em sua vida pessoal.

O mundo inteiro aplaudiu o retorno de Dylan ao ceticismo judaísmo habitual em discos brilhantes como “Infidels”, Ëmpire Burlesque” e “Oh Mercy”, e novas tournées acompanhado pelo Grateful Dead e por Tom Petty & The Heartbreakers.



Vinte anos atrás, Dylan teve uma doença no coração que quase o matou.

Do balanço dessa experiência, ele produziu o disco mais sombrio e mais denso de sua carreira: “Time Out Of Mind”, uma descida ao inferno com passagem de volta, onde o personagem principal se vê diante de toda a fragilidade e de todas as contradições da condição humana.

Uma pequena obra prima, com a produção climática e a "musicalidade orgânica" de Daniel Lanois.

De lá para cá, Dylan manteve-se na cena fonográfica alternando discos com canções novas de altíssimo gabarito com lançamentos de discos pirata clássicos remasterizados na longa série The Bootleg Series -- sem contar as idiossincrasias de praxe, como um disco com Canções de Natal e vários outros com números clássicos do The Great American Songbook reinterpretados com sua voz escalavrada. 



Bom, mas voltando a "Letras 1961/1974", o livro com as canções coletadas de Bob Dylan, que acaba de chegar às livrarias pela Companhia das Letras, é sob medida para apresentar Dylan ao leitor brasileiro que ainda não conhece sua poesia e seu universo temático.

Faz um par com o volume com as letras completas de Lou Reed que a mesma Companhia das Letras lançou três ou quatro anos atrás.

A edição e a introdução originais de "Lyrics 1961/2014" foram feitas para a Simon & Schuster por Christopher Ricks, que editou livros de T.S. Eliot, Samuel Beckett e The Oxford Book of English Verse.

Segundo Luiz Schwarcz, fundador e CEO da Companhia das Letras, publicar o livro de letras de Dylan sempre foi um sonho da editora​: “A​s negociações para a compra dos direitos da obra​ começaram há dois anos, quando nem se imaginava que Bob Dylan poderia​ ser agraciado pelo prêmio Nobel​”.



O tradutor paranaense Caetano W. Galindo, responsável pela empreitada, é um profissional bastante esforçado, e seu trabalho costuma ser tecnicamente irrepreensível.

Mas talvez a pressa em entregar a encomenda, somada à afinidade mínima que o tradutor tem (e não esconde) em relação à obra de Dylan, tenham sido responsáveis por um produto final frio e pouco cativante.

O fato de letras de músicas não serem exatamente poesia não quer dizer que essas letras não tenham uma musicalidade própria, independente das melodias que acompanham.

Conhecendo bem a obra de Dylan, confesso que não sinto que esse "pequeno detalhe" tenha sido priorizado pelo tradutor.

Para mim, ficou com um gostinho de "Dylan merecia mais".

E deixou em mim a certeza de que o volume com as letras de canções de Lou Reed da mesma editora recebeu cuidados maiores de seu tradutor.

Nada disso inviabiliza a empreitada de Schwarcz & Galindo em "Letras 1961/1974", apenas reduz um pouco sua grandeza. 
    



LETRAS (1961/1974)
Bob Dylan
Editora Companhia das Letras

Título original
LYRICS (1961/2014)

640 Páginas

Preço:
R$72,00 a R$89,00


Chico Marques devora livros
desde que se conhece por gente.
Estudou Literatura Inglesa
na Universidade de Brasília
e leu com muito prazer
uma quantidade considerável
de volumes da espetacular
Biblioteca da UnB.
Vive em Santos SP, onde,
entre outros afazeres,
edita a revista cultural
LEVA UM CASAQUINHO









No comments:

Post a Comment