Thursday, May 18, 2017

PELA HORA DA MORTE (uma crônica de Marcelo Rayel Correggiari)



Se tem coisa que essa moribunda Mercearia detesta é envelhecer... e... morrer! Putz... ô coisinha enfurecedora que é morrer, viu?!

Sério! Merceeiro de cabelos brancos, conforme interjeição comum entre conhecidos oriundos dos movimentos GLBTs, “... é o ‘ó’!”. Morrer, então... nem pensar! Putz... que saco esse troço de morrer!

É uma choradeira dos infernos, gente no velório, família despedaçada... e a gente lá... dentro do caixão, contrariado(a) ‘pra’ cacete! Pior que isso só ministro da fazenda na marciânica Brasília dizendo que “... o pior já passou...”, que está tudo indo bem, vai dar tudo certo, que vamos decolar, blá-blá-blá... Contrariedade pura.

Em certo momento ‘de la vida’, conforme Nosso Guia, Nosso Mestre, Lourenço Mutarelli, “... agora o reloginho gira ao contrário! É contagem regressiva, meu!”. Nós, dessa fúnebre Mercearia, que não somos tão bobos assim, começamos a prestar atenção nos obituários do Wikipedia.

Por força de uma mistura infalível de aveia com café (uma espécie de activia para gente descamisada), fez-se imperativa, num dia desses, certa visitação àquele cômodo mais privado, deveras corriqueiro, de boa parte dos domicílios desse lindo planeta Terra.

Acompanhados das ‘belas-letras’ (que podem ser feias, também... não há problema algum!), deparamo-nos com singelo conto da magistral Shirley Jackson, aquele “Chão-de-Estrelas” (Sílvio Caldas), aquele “Emoções” (Roberto Carlos), aquele “Conceição” (Cauby Peixoto) de seu legado literário, “The Lottery” (publicado inicialmente na revista The New Yorker, em 1948).

Após as duas páginas iniciais, uma pausa providencial. Não... não é isso que você está pensando, querido(a) freguês(a): foi para sacar um ‘smartphone’ do bolso e checar qual a durabilidade da referida escritora.

Espanto! Somente 49 anos! “Caracas!”, pensamos. “’Tá’ chegando minha hora!”. ‘Pas bon’! E dá-lhe procurar na famigerada enciclopédia a ‘causa-mortis’ da criatura: um coquetel de remédios psiquiátricos, ‘cigarrights’ e provavelmente umas biritas para abrandar a existência colaboraram para uma parada cardíaca que abreviou relevante passagem.


Shirley Jackson é um daqueles nomes bem pouco conhecidos nos mares-do-sul: somente alguns iniciados ou donos de Mercearias são os que trombam com os textos requintados da autora estadunidense. Artista popular lá nas ‘quebradas’ onde morou, mas ainda dependente de melhor divulgação nas paragens daqui.

‘The Lottery’ é um conto bem, bem curtinho, que se passa numa daquelas pequenas cidades do interior cujo grande evento anual é uma espécie de ‘megasena’ dos horrores: a pessoa sorteada é apedrejada! Sério! Mulheres só podem tirar o papelzinho destinado ao clã na ausência de um homem adulto (que pode ser o primogênito, desde que tenha 18 anos de idade). Uma vez sorteada a família, há um segundo sorteio, que inclui mulheres e crianças, para se saber qual membro levará pedradas até o seu fim.

Imaginem toda aquela ‘pompa-e-circunstância’ para a esperada reunião anual: a Loteria (macabra!) da cidade. Todos cordiais, sutis, elevadamente civilizados para uma premiação de lascar! Longe de um estilo um pouco mais ‘floreado’ de seu conterrâneo Edgar Allan Poe, Shirley Jackson mata a pau (ou pedra!) na habilidade própria em construir ao longo da narrativa uma gradação que não permite ao(à) leitor(a) a alternativa de interrupção de sua leitura até a última linha.

Passado o pânico de não possuirmos um perfil semelhante ao dela (o que garantiria alguns aninhos a mais), vamos ver o que os demais diziam sobre ela e sua obra (uma espécie de “... manda ‘nudes’!”, mas sem whatsapp com foto de celular para fazer a alegria da galera). Segundo o marido dela, o crítico literário Stanley Edgar Hyman: “(...) ela consistentemente recusava entrevistas, ou explicações e promoções de seus trabalhos por intermédio de quaisquer modismos, incluindo aparições públicas ou a pecha de “erudita” dos suplementos literários de domingo. Ela acreditava que seus livros falariam por ela de forma irrefutavelmente clara ao longo dos anos. (...)”.

Uma mulher a frente de seu tempo, sem a menor sombra de dúvida! Postura de escritora, e-s-c-r-i-t-o-r-a, que empurra para a obra, para a performance e estética de seus textos, o dever de tocar seu(ua) leitor(a): a obra anterior a quem eventualmente pôs a mão na massa.


É isso aí, meu povo! Ao(À) querido(a) freguês(a) dessa inoportuna Mercearia a má notícia de que continuaremos nossa magnânima aporrinhação. Só mais um pouquinho, mas juramos fazer algo a respeito. Ou como dizia Plínio Marcos a seus leitores toda vez que adquiriam um exemplar de alguma obra sua: “(...) prometo morrer logo que é ‘pra’ valorizar a obra. (...)”.

Essa morta-viva Mercearia já avisou aos(às) fregueses(as) mais chegados(as) que, em caso de evento fúnebre, estão autorizados a se aproximar do féretro, dar um tapinha ali na beirada da esquife e soltar o célebre enunciado: “Puta que pariu! ‘Taí’ um cara contrariado!”.

Uma coisa vocês podem ter certeza: o morto não saberá de nada ao longo do evento social que possa aborrecê-lo no dia seguinte.


Marcelo Rayel Correggiari
nasceu em Santos há 48 anos
e vive na mítica Vila Belmiro.
Formado em Letras,
leciona Inglês para sobreviver,
mas vive mesmo é de escrever e traduzir.
É avesso a hermetismos
e herméticos em geral,
e escreve semanalmente em
LEVA UM CASAQUINHO

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