Thursday, May 11, 2017

CAFÉ & BOM DIA #59 (por Carlos Eduardo Brizolinha)



Texto divertido de Satie é deveras apropriado para enfeitar a quinta feira. O artista deve regulamentar a sua vida. Aqui vai o horário exato dos meus atos diários: Levantar: 7.18; inspirado: das 10.23 às 11.47. Almoço às 12.11 e deixo a mesa às 12.14. Passeio saudável a cavalo, no fundo do meu parque: das 13.19 às 14.53. Nova inspiração: das 15.12 às 16.07. Ocupações diversas (esgrima, refexões, imobilidade, visitas, contemplação, destreza, natação, etc.): das 16.21 às 18.47. O jantar é servido às 19.16 e concluído às 19.20. Seguem-se leituras sinfónicas, em voz alta das 20.09 às 21.59. Deito-me regularmente às 22.37. Uma vez por semana, acordo sobressaltado às 3.19 de terça-feira. Apenas como alimentos brancos: ovos, açúcar, ossos raspados; banha de animais mortos; vitela, sal, noz de coco, frango cozido em água branca; bolor de fruta; arroz, nabos; salsicha de cânfora, massa, queijo branco, salada de algodão e de certos peixes sem pele. Faço ferver o meu vinho, que bebo frio com sumo de fúcsia. Tenho óptimo apetite; mas nunca falo enquanto como, com medo de me engasgar. Respiro com cuidado (pouquinho de cada vez). Danço muito raramente. Ao caminhar, seguro-me nas costelas e olho fixamente para trás. De aspecto muito sério,Itálico se rio não é de propósito. Peço sempre desculpa e com afabilidade. Durmo apenas com um olho fechado; o meu sono é muito difícil. A minha cama é redonda, com um buraco para a passagem da cabeça. Hora a hora, um criado tira-me a temperatura e dá-me logo outra. Desde há muito que assino um jornal de moda. Uso um boné branco, meias brancas e um colete branco. O meu médico sempre me aconselhou a fumar. E acrescenta aos seus conselhos: — Fume, meu amigo; se não o fizer, outro qualquer fumará na sua vez. Eric Satie em Mémoires d’un Amnésique.


A geração dos anos 60 que Mariane Faithfull fez parte considerava obrigatória a leitura de " Às Avessas ". Nos anos 70 o autor obrigatório foi Herman Hesse, poucos deixaram de ler " O Lobo da Estepe ", " Jogo das Contas de Vidro " como também ler o livro de Thomas Mann " Morte em Veneza e o filme de Luchino Visconti. O primeiro livro de Hesse lido por Thomas Mann foi Demian, Hesse ainda usava o pseudônimo Sinclair. Os dois mantiveram relação próxima e Hesse era apreciado pelo humor peculiar divertindo reuniões em Munique, reuniões que contava entre outros com a presença de Mahler ,kaulbach, Gide Emil Sinclair narra a história. Max Demian amplia a visão de vida para Sinclair. O gosto da independência e a rebeldia contra as convenções sociais deram sabor especial para os jovens dos anos 60/70. Cada um de nós tem que encontrar em si mesmo o permitido e o proibido à sua própria pessoa. Eva a mãe de Demian ganha forma emblemática. Uma mulher da transição da adolescência para o adulto. Com Hesse vamos do religioso ao fantástico. É um livro quase esquecido. Thomas Mann teve este livro como um dos seus preferidos.


Quando leio Jorge Luis Borges minhas pernas dobram, anestesia minha alma e saio pelas ruas como se houvera feito voto de silêncio. Escrever contos, ditando-os primeiro à mãe e, após a morte desta, a uma assistente. Reúne-os em coleções como Ficções, O Aleph e O Livro de Areia. A cegueira não lhe tirou a luz da alma. “Um livro não é um ser isolado; é um relacionamento, um eixo de inúmeros relacionamentos.” “Sempre imaginei que o paraíso seria algum tipo de biblioteca.” “Não tenho a certeza de que eu exista. Sou todos os escritores que li, todas as pessoas que conheci, todas as mulheres que amei, todas as cidades que visitei, todos os meus antepassados.” “A realidade nem sempre é provável. Mas se escrevemos uma história temos de a fazer tão plausível quanto possível, ou a imaginação do leitor rejeitá-la-á.” “Há muito que desejo escrever sob pseudónimo uma crítica feroz contra mim próprio.” “Não fales a não ser que possas melhorar o silêncio.” “Não consigo dormir a não ser que esteja rodeado de livros.”


Desejar as cores como desejou Baudelaire, ouvindo tua voz à luz artificial lendo ensaios críticos de pinturas.. Não importa onde, fora do mundo. Teus expressivos olhos convidam os meus para viajar pelas linhas simbolistas, dai atravessamos horas nos caminhos de Arthur Gordon Pyn para aportar, transcender deitados nos fragmentos de estrelas que aos olhos de simples mortais são areias. Confeitar as reflexões com flores do mal nos faz marejar em terra firme. Teu corpo dança delicadamente. Salomé é estática na tela de Gustave Moreau, é inspiração para os simbolistas e real para mim.


Navegar no imaginário uma viagem de longo curso com gosto de deslocamento que só existe numa recordação. Navegar neste instante desfrutando da minha vontade, com a plenitude da minha vontade, sem fadiga e sem preocupação. Navegar no limitado tempo em cenário transitório, extasiado, em doce contemplação. Navegar substituindo a realidade dos fatos, sem restos, sem inutilidades. Remando desejos plenos de satisfação. Navegar no sopro dos ventos, nuvens gotejantes. Riscando teu oceano com algas, desenhando estrelas, remando com o coração. É muito divertido brincar com alguns parágrafos dos livros de Huysmans e foi o que fiz. Embarco numa ideia e desenvolvo variações.


E lá vem você, com seus olhos castanhos escuros, cabelos de Lady Godiva, sorriso dominante; Carlos, sossegue, o amor é isso que você está vendo: hoje beija, amanhã não beija, depois de amanhã é domingo e segunda-feira ninguém sabe o que será. Não há uma vez que não me divirta, então se ouço recitar Drummond, repondo eu com Natália Correia Mas só porque vieste fez-se tarde, Ou é a vida que nasce já tardia Como uma estrela que se acende e arde Porque não cabe na rapidez do dia?

NENHUMA GOTA DE CAFÉ.



Carlos Eduardo "Brizolinha" Motta
é poeta e proprietário
da banca de livros usados
mais charmosa da cidade de Santos,
situada à Rua Bahia sem número,
quase esquina com Mal. Deodoro,
ao lado do EMPÓRIO SAÚDE HOMEOFÓRMULA,
onde bebe vários cafés orgânicos por dia,
e da loja de equipamentos de áudio ORLANDO,
do amigo Orlando Valência.


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