Saturday, May 13, 2017

O CLÁSSICO VIOLENTO (por Marcus Vinícius Batista)




Eu estava sem adversários. Passava as férias na casa da minha avó e levei comigo o estrelão – apelido do campo, da marca Estrela – e alguns times de futebol de botão.

Depois de alguns dias, eu estava cansado de jogar contra mim mesmo. É como jogar xadrez contra si próprio. A diferença – talvez – esteja no movimento do jogador. No xadrez, você roda o tabuleiro. No botão, você precisa dar a volta no campo, fácil quando ele mede menos de um metro de comprimento. A semelhança é que, com o tempo, a probabilidade de empate se torna real, diante do jogador que conhece bem os truques do adversário interno. Zero a zero é a morte em vida do futebol.

Eu jogava no quarto de costura da minha avó Norvina. Ali, conversávamos de vez em quando e o barulho da máquina me distraía. Às vezes, ela contava com a presença da Beatriz, a assistente uruguaia que era uma simpatia e educação únicas.

Numa das manhãs, minha avó deve ter percebido meu tédio diante do estrelão. Imagino eu, pois ela parou o serviço e se ofereceu para jogar uma partida comigo. Por que não, vó?

Escolhemos os times, com jogadores de plástico, comprados em banca de jornal. Eu tinha dezenas de equipes, pois trocava o adesivo original – em cartela – por decalques de uma papelaria. Ainda os guardo numa caixa de madeira, feita pelo meu pai, onde ficam os 12 grandes brasileiros, em um mini-armário para pregos, parafusos e afins, onde estão os times médios e pequenos brasileiros, e um pote de sorvete, onde permanecem os clubes estrangeiros.

Fiquei com o Corinthians. Minha avó – não me lembro o motivo – optou pelo Santos. Expliquei as regras básicas mais os movimentos com a palheta para usar os jogadores. No par ou ímpar, ganhei o direito de começar a partida.

Assim que dei a saída, parti para o ataque. Dois ou três toques na bola e estava na intermediária adversária. Pedi para chutar com o habitual “tá lá?”

Minha avó me olhou com espanto, como se perguntasse: “O quê?”

— Vó, tá lá significa que quero chutar. Arruma o goleiro e tenta defender.

Ela concordou com a cabeça, arrumou o goleiro e me deu autorização. Sócrates, um dos sujeitos que me fizeram escolher o Corinthians como time de coração, ajeitou o corpo e bateu, sem defesa para o goleiro do Santos, na época, Marola. 1 a 0.

Sorri com o gol marcado, mas não fiz festa. Na petulância de criança, enxergava minha avó como café com leite. A goleada era questão de tempo e, antes disso, não poderia me esquecer que estava ali para ensiná-la. Era uma companhia, claro, mas não me lembro se pensei neste fator motivacional para a realização do clássico.

Ajudei-a a arrumar os jogadores para dar a saída e reiniciar a partida. Ela pegou errado na palheta e corrigi o movimento. Repassei o que deveria ser feito e alertei para a dosagem da força. Um movimento forte e a bola – na verdade, um disco semelhante ao de hóquei – estaria perdida pela linha de fundo.

Minha avó tentou uma vez. O jogador do Santos não se mexeu. Pedi que ela fizesse de novo. Nada do sujeito sair do lugar. “Vó, outra vez. Tudo bem!”

Ela encostou a palheta novamente no atacante santista – cujo nome é melhor manter em segredo – e fez o movimento. A precisão e a força nos dedos de costureira foram fatais. Crac!!!! O jogador do Santos quebrou no meio. Partiu-se em dois. A bola permaneceu intacta.

Eu e minha avó nos olhamos sem saber o que fazer. Ambos surpresos. Ambos chocados diante da violência do futebol, que fizera a primeira vítima naquele apartamento do Gonzaga.

Eu não disse palavra. Ela se desculpou e se levantou. Deu uma justificativa qualquer para retornar ao trabalho. Eu aceitei, guardei os times, apanhei outros e voltei para meu próprio campeonato.

Minha avó me deu incontáveis times de botão na vida. Mas, como adversária, nós nunca nos demos a honra de um jogo de volta, ainda que o clássico entre Santos e Corinthians tenha durado um chute a gol e um atleta sem condições de voltar a campo.

Anos depois, o time do Santos foi substituído pelo São Paulo, de uniforme branco e adesivo novo. De vez em quando, o tricolor entra em campo para enfrentar o Santos, da minha filha Mariana. Até hoje, atua com um homem a menos. Anos atrás, preguiça de contratar alguém. Hoje, uma lembrança afetiva da oponente que nunca tive.


Publicado originalmente em 7 de Março de 2017



 
Marcus Vinícius Batista
é o cronista santista número um, ponto.
É autor de "Quando Os Mudos Conversam"
Realejo Livros)
coletânea de crônicas escritas
entre 2007 e 2015
e mantém uma coluna semanal
no Boqueirão News
que é aguardada com avidez
por sua legião de leitores.
Atendendo a um pedido
de LEVA UM CASAQUINHO,
ele se dispôs a resgatar
algumas de suas crônicas favoritas
escritas nos últimos anos
para republicação no BAÚ DO MARCÃO.


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