Thursday, March 1, 2018

DANDO MIGUÉ (por Ademir Demarchi)



O escritor espanhol Javier Cercas, numa entrevista ao Guardian, em trecho transcrito no Rascunho por Vivian Schelesinger, afirmou sobre a Espanha que “temos uma tradição de ditadura e inquisição; matamos as pessoas por pensarem diferentemente de nós. Nosso esporte nacional não é futebol, é a guerra civil”. A observação é curiosa pelo que remete ao Brasil. Ao se referir ao futebol, é direta. De fato, até se poderia acreditar em tal fantasia sobre nosso pretenso gosto pacifista pela bola se não soubéssemos como este país tem aprimorado o morticínio ao longo do tempo, de forma constante no campo, contra índios e todo tipo de marginalizados, e de forma massiva nos grandes centros urbanos, sendo, no Estado de São Paulo, exemplares os casos dos 101 presos indefesos fuzilados pelo governo e sob guarda do governo no Carandiru e o morticínio de 505 civis em 2006 em poucos dias, com participação da PM, ainda sem apuração, a ponto da ONU exigir esclarecimentos e o Governo Federal se constranger a determinar à Polícia Federal que investigue o caso, já que o Estado de São Paulo não tem interesse nenhum nisso, pois por baixo do tapete há negociatas travadas com a máfia do PCC. Entretanto poderíamos acreditar numa exceção em como têm se dado as massivas manifestações de protestos nas ruas desde 2012, contra os governos, sem que tenha morrido um até agora, apesar de jornalistas já terem perdido olho por balas de borracha, justamente no Estado de São Paulo que, como prêmio pela repressão truculenta, emplacou o ministro do que se pretende Justiça nesse antiquado novo governo instituído de forma discutível. Ou seja, parece insofismável nossa sina para o 7x1. Aceite-se, então, apesar dessas “pequenas” ressalvas, nossa índole para o jogo, a que poderíamos acrescentar também o riso, outra forma de jinga. Os exemplos de ironizações são inesgotáveis, tanto em manifestações quanto nas mídias sociais, mas falar sobre isso seria o óbvio, uma vez que, escaldada pela experiência nefasta da guerrilha pós-64, a esquerda hoje não pega em armas que não façam rir. E, pior, depois daqueles governos sisudos e implacáveis da ditadura, os de agora são ridículos e se esforçam sobremaneira para ser mais engraçados, ou patéticos, que as piadas que os oposicionistas possam fazer. O caso desse eterno vice decorativo que age, fala e tosse como um boneco de ventríloquo é eloquente. Para começar, seu nome afrancesado não engana. Significando “aquele que se assemelha a Deus”, um dos sete arcanjos, protetor do povo eleito (não estou ironizando...), escolhido para lutar contra Lúcifer, na real parece ele mesmo um decaído, já em estado de inelegível, conforme julgamento do Tribunal Eleitoral, daí a preferência pelas tramoias de bastidor, e a pecha demonizante que o povo tem lhe aplicado como sendo ele mesmo uma metamorfose do Demônio, quer por sua cara, quer pelas maldades que tem prometido. Ocorre que a piada não acaba, pois, afastado aquele afrancesamento envernizado que se raspa com a unha, chega-se, de novo, ao Brasil que o traduz para Miguel e o povo para “migué”, “dar um migué”, que significa uma forma evasiva de lidar com situações adversas, em que o sujeito que o aplica procura escapar de suas responsabilidades. A miguelagem, assim, no populacho, designa malandragem e dissimulação. Curiosamente, na origem da expressão também poderia estar o caráter de “absolutismo real”, tão apropriada a um golpista, uma vez que remete ao regente português Dom Miguel, filho de Dom João VI, que usurpou o trono de Dom Pedro I (do Brasil) que era o primeiro na linha sucessória. Ainda que valha essa também, tendo sentado no trono, começou a dar as descargas. De miguelada em miguelada, não cessa de pagar mico (espécie de primo pobre do migué...). Há muito mais, porém o espaço acabou, por isso as migueladas mais histriônicas ficarão para a próxima semana, enquanto ele faz outras...


[publicado originalmente no
Diário do Norte do Paraná
em 22/08/2015]




Ademir Demarchi é santista de Maringá, no Paraná,
onde nasceu em 7 de Abril de 1960.
Além de poeta, cronista e tradutor,
é editor da prestigiada revista BABEL.
Possui diversos livros publicados.
Seus poemas estão reunidos em "Pirão de Sereia"
e suas crônicas em "Siri Na Lata",
ambos publicados pela Realejo Livros e Edições.

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